Em março de 1996, sem apresentar nenhuma razão válida, o Dalai Lama chocou as comunidades tibetanas e a mais ampla comunidade budista internacional, dando um passo sem precedentes ao impor uma proibição sobre a prática de Dorje Shugden, acusando essa prática religiosa muito popular, com centenas de anos, pelo seu fracasso em obter a independência política para o Tibete. Agiu, como ele próprio afirmou, seguindo o conselho do oráculo de Nechung, o médium de espíritos que regularmente o aconselha em questões de estado. Em cartas enviadas pelo seu Gabinete Oficial, em março de 1996, aos abades dos monastérios tibetanos no sul da Índia, ele apresentou duas razões para a imposição da proibição:
(…) oráculos do governo apontaram que a saúde de Sua Santidade, o Dalai Lama, bem como a causa do Tibete correm perigo devido à veneração de Dorje Shugden. Proibi-la também é a conclusão de Sua Santidade depois de anos de observação.244
Depois, como a doutora Ursula Bernis informou: “Esse conselho, expresso claramente pelo Dalai Lama, foi imediatamente promulgado pelos funcionários do governo até que se converteu numa rigorosa proibição”.245 Pouco tempo depois, o Kashag formalizou a proibição através de um comunicado escrito:
A essência do conselho de Sua Santidade é esta: “Propiciar Dholgyal prejudica enormemente a causa tibetana. Também coloca em perigo a vida do Dalai Lama”. Portanto, é totalmente inapropriado que os grandes monastérios da Tradição Gelug, os monastérios Tântricos Superiores e Inferiores e todos os outros monastérios afiliados que sejam instituições nacionais propiciem Dholgyal (…).246
Dessa forma, o Dalai Lama colocou os praticantes de Dorje Shugden na posição de inimigos de estado, culpando-os pelos fracassos de sua política para obter a independência do Tibete e transfromando-os em alvo das crescentes ondas de frustração e desilusão surgidas do colapso catastrófi da esperança popular “na causa tibetana” que ele sustentou artificialmente durante tantos anos. Desse ponto de vista, a proibição da prática de Dorje Shugden serve para ocultar seus próprios fracassos políticos, um artifício criado para desviar o ódio do povo tibetano de não estar nem um pouco mais próximo de um retorno ao Tibete, depois de 50 anos, criando um “inimigo interno”, contra o qual todo esse ódio pode ser direcionado.
Em 2009, o governo tibetano no exílio começou a dizer que a questão de Dorje Shugden não é sequer um problema religioso, mas inteiramente político. Samdhong Tulku disse: “(…) não é uma questão religiosa; está unicamente inserida dentro da situação política”, acusando os praticantes de Dorje Shugden de serem instrumentos usados pelo governo chinês.247
Durante séculos, Dorje Shugden tem sido visto por budistas como um ser iluminado que atua como um dos principais protetores da Tradição Gelug. Nunca foi demonstrado como a prática de Dorje Shugden pode ter a mais ínfima conexão com a conquista da independência tibetana ou com o estado de saúde do Dalai Lama. Entretanto, como não há meta mais próxima do coração da grande maioria dos tibetanos do que a causa do Tibete (o que corresponde em suas mentes a um Tibete livre e independente) e devido ao cuidadoso cultivo da imagem do Dalai Lama como centro das aspirações do povo tibetano, a nova proibição foi vigorosamente implantada. Na caça às bruxas mccarthista que se seguiu e que ainda continua até os dias de hoje, a sociedade tibetana foi confrontada consigo mesma em todos os seus níveis.