Desde que o Dalai Lama deixou seu país natal, gradualmente, ao longo dos anos, 145.000 tibetanos saíram do Tibete e estabeleceram assentamentos na Índia, Nepal e Butão, ou então se estabeleceram mais longe em comunidades de exilados ao redor de todo o mundo.268
O próprio Dalai Lama, juntamente com muitos de seus discípulos próximos, finalmente se estabeleceu na antiga estação montanhosa britânica de McLeon Ganj, próxima à pequena cidade indiana de Dharamsala, no norte da Índia. A cidade indiana cresceu ao seu redor e constitui agora a principal cidade de refugiados tibetanos.
Para manter um controle eficaz sobre essa população refugiada tão disseminada, uma custosa administração foi criada.269 Essa administração ficou conhecida como o governo tibetano no exílio, embora não possua status legal seja dentro ou fora da Índia, e não seja oficialmente reconhecida por nenhum país, muito menos pela Índia.270
Uma declaração oficial publicada pelo Departamento de Informação do governo tibetano no exílio diz:
No exílio, o governo tibetano está reorganizado de acordo com os princípios democráticos modernos. Ele administra todas as questões pertinentes aos tibetanos no exílio, incluindo a restauração, preservação e desenvolvimento da cultura e educação tibetana, e lidera a luta pela restauração da liberdade tibetana.271
Há uma Assembleia Nacional Tibetana de Deputados do Povo (usualmente chamada de Assembleia Nacional), que está composta por quarenta e seis representantes. Entretanto, dentre esses representantes, somente trinta são diretamente eleitos pelo povo tibetano. As cinco maiores tradições religiosas (Gelug, Kagyu, Sakya, Nyingma e Bön) elegem dois representantes cada e os seis restantes são indicados diretamente pelo Dalai Lama. Apenas isso constitui uma brecha nos princípios democráticos, já que somente dois terços dos delegados são diretamente eleitos pelo povo. A Assembleia Nacional aponta nominalmente os membros do Gabinete (Kashag, em tibetano), mas na prática eles são de forma corriqueira diretamente nomeados pelo Dalai Lama. Nos anos 1980, o Dalai Lama chegou mesmo a incumbir-se de nomear unilateralmente todos os delegados da Assembleia Nacional.272
Tsering Wangyal, ao escrever para o Tibetan Review em 1979, ressaltou que “cada titular de um posto importante em Dharamsala tem que ser aprovado pelo Dalai Lama antes de assumir formalmente seu posto”.273 E no mesmo artigo está dito:
Apesar da introdução, em 1963, da sua parafernália exterior, a democracia tibetana está ainda por nascer. A Comissão dos Deputados do Povo Tibetano (a Assembleia Nacional), a mais conscientemente democrática das instituições da comunidade tibetana isolada, falhou em sua última aparição pública em modificar sua imagem de ser um corpo impotente
– subserviente no que diz respeito a todos os objetivos práticos aos ditames do governo (o Dalai Lama) (…). A experiência até agora demonstrou que os antigos valores e ideias mundanas ainda continuam a dominar as posições de poder na comunidade tibetana (…).
Durante os últimos cinquenta anos, o funcionamento do governo tibetano no exílio em Dharamsala jamais enfrentou um partido de oposição, nem sequer um indivíduo que pudesse ser chamado de membro da oposição. Nunca tomou uma decisão contrária à posição do Dalai Lama e tal acontecimento chega a ser considerado inconcebível. Com total autoridade (executiva, legislativa, judicial e religiosa) investida somente na pessoa do Dalai Lama, seu governo deixou de sustentar qualquer pretensão de democracia constitucional.
O governo tibetano é o Dalai Lama, e o Dalai Lama é o governo tibetano. Por detrás das armadilhas do governo com sua ilusão de democracia, a posição do Dalai Lama, com seu princípio central, L’etat, c’est moi (I am the State), estende seu domínio de autoridade sobre todos os aspectos da política e tomada de decisões. Não há decisão governamental que não seja uma decisão do Dalai Lama.
Por ser comumente visto como um ser infalível, a corporificação de um Buda, não somente é inconcebível, mas seria também heresia formular uma política ou tomar uma decisão contrária a seus desejos. Além disso, porque seria novamente um ato de heresia criticar a política ou as decisões de um suposto ser iluminado, toda crítica e culpa pelos erros do Dalai Lama são direcionados ao governo tibetano, que não tem como corrigi-los.
Desse modo, o assim chamado governo tibetano é culpado por todos os erros do Dalai Lama e a imagem irreprochável do Dalai Lama é mantida intacta. Esse sistema extremamente conveniente possibilitou ao Dalai Lama, através da ilusão de governo, destruir a reputação e as atividades dos outros, intimidar e persegui-los e instigar violência contra eles, enquanto, ao mesmo tempo, mantinha uma imagem pública impecável, sabendo muito bem que qualquer culpa subsequente seria depositada em seu “governo”.
Em setembro de 1995, uma carta aberta sem precedentes, da parte do povo tibetano para o Dalai Lama, foi dada anonimamente para uma cidadã inglesa que viajava pelo Nepal. Chamada de “A carta as presas do mangusto” (ver Apêndice 2), revela-se aos ocidentais, pela primeira vez, o outro lado do Dalai Lama, um lado que já era um segredo revelado no seio da comunidade tibetana. Pela primeira vez, o Dalai Lama e seu governo foram publicamente acusados de coisas como tráfego internacional ilegal de armas, perseguição e assassinato, e de criar divisão e discórdia entre as comunidades das tradições espirituais tibetanas.