A questão da democratização

A proposta do Dalai Lama de uma democracia no estilo ocidental, apresentada em Estrasburgo em 1988 e repetida desde então, é destinada a obter o apoio ocidental, mas não reflete a intenção verdadeira do Dalai Lama. Isso pode ser percebido de vários pontos de vista diferentes. Considerando a história dos Dalai Lamas, como mostrado anteriormente (no Capítulo 8), constata-se não houve qualquer tipo de demonstração de interesse pela democracia por parte deles. O governo tibetano, com os Dalai Lamas como seus chefes, tem sempre sido, e continua sendo, uma teocracia feudal.

O sistema de governo do Dalai Lama não surgiu dos desejos e aspirações do povo tibetano e nem partiu de nenhum processo eleitoral ou referendo. Foi impiedosa e até violentamente imposto através de uma série de campanhas militares e intrigas políticas que, no final, estabeleceram o poder político absoluto e a supremacia religiosa sobre todo o Tibete.

A contínua falta de interesse pela democracia demonstrada pelo governo do atual Dalai Lama também fica evidente pelo fato de que, mesmo após cinquenta anos no exílio dentro do estado democrático da Índia, o governo tibetano no exílio ainda é antidemocrático; o Dalai Lama detém autoridade e controle completos. Nenhuma decisão do parlamento tibetano no exílio jamais foi contra seus desejos e é inconcebível que isso alguma vez ocorra. Como o escritor tibetano e antigo editor da Revista Tibetana, Dawa Norbu, comentou:

É desafortunado, embora verdadeiro, que o Dalai Lama no exílio sempre tendeu a desencorajar o sugimento de líderes alternativos, a não ser que oficialmente aprovados por ele.227

E como salientou a Doutora Ursula Bernis:

O esforço para a democratização não inclui a separação entre política e religião. Já que o governo tibetano no exílio em Dharamsala não constitui legitimamente um governo pelos padrões legais e internacionais, fica difícil analisar essa questão de forma clara e direta. Democrático não é. O povo tibetano nunca foi convidado a votar sobre nenhuma das mais importantes decisões políticas relativas ao futuro do seu país seja fora ou dentro do Tibete.

Comumente nem mesmo a Assembleia ou o Gabinete (Kashag) são consultados. Inclusive algo tão básico como liberdade de expressão, o próprio fundamento da democracia, é completamente inexistente dentre tibetanos no exílio. Críticas aos negócios oficiais do governo no exílio normalmente são descartadas como sendo de origem chinesa.228
Em 1963, o Dalai Lama, contando com a ajuda de um advogado indiano, esboçou um anteprojeto constitucional para um Tibete livre. Nessa constituição, o Dalai Lama detém a autoridade suprema e, como Grunfeld salienta: “Caso aquela declaração [contida no Prefácio da Constituição, de que a Constituição ‘leva em consideração as doutrinas estabelecidas pelo Senhor Buda’] seja literalmente aceita, então o Dalai Lama nunca poderá perder o seu poder – espiritual ou temporal –, a não ser que ele abdique”.229
Na constituição tibetana adotada em 14 de junho de 1991, no artigo 19 sobre o poder executivo, pode-se ler:

O poder executivo da Administração tibetana será outorgado a Sua Santidade o Dalai Lama e deverá ser exercido por Ele, seja diretamente ou através de seus funcionários, subordinados a Ele, de acordo com as disposições desta carta constitucional. Em particular, Sua Santidade, o Dalai Lama, terá o poder de exercer os seguintes poderes executivos como principal mandatário do povo tibetano:
a. aprovar e promulgar projetos de lei e emendas apresentadas pela Assembleia tibetana;
b. promulgar atos e decretos que tenham força de lei;
c. conferir honras e patentes de mérito;
d. convocar, suspender, adiar e prolongar a Assembleia tibetana;
e. enviar mensagens e discursos à Assembleia tibetana de acordo com a necessidade;
f. dissolver ou suspender a Assembleia tibetana;
g. dissolver o Kashag ou remover um Kalon ou Kalons;
h. convocar reuniões especiais ou de emergência de maior importância; e
i. autorizar referendos em caso de assuntos importantes, de acordo com essa carta constitucional.

E no artigo 20 sobre o Kashag (Gabinete eleito) e o Kalon Chefe (Ministro Chefe), estipula-se em particular:
Deve existir um Kashag e um Kalon Chefe primariamente responsáveis pelo exercício dos poderes executivos da Administração tibetana, ambos subordinados a Sua Santidade, o Dalai Lama.230

Apesar da aparente tentativa de separação dos poderes da Igreja e do Estado, eles ainda convergem na figura do Dalai Lama, o que acarreta numa Assembleia Nacional passiva, sem poderes, e num sistema político que segue o conselho recebido pelo seu líder, o Dalai Lama, de um espírito, o oráculo de Nechung.
Como já foi mencionado, em sua autobriografia Liberdade no Exílio, o Dalai Lama afirma:

Busco sua opinião da mesma forma que busco a opinião do meu conselho de ministros e de minha própria consciência. Considero os deuses como minha “câmara superior”. O Kashag representa minha “câmara inferior”. Como todo líder, eu consulto ambos antes de tomar qualquer decisão relativa a assuntos de estado.

Não se contentando em fazer comparação com deuses não eleitos, aos quais somente ele tem acesso, com o Gabinete de Ministros eleitos pelo povo tibetano, o Dalai Lama continua:

(…) Meu relacionamento com Nechung é aquele de um comandante com seu tenente. Nunca me curvo diante dele. É Nechung quem deve se curvar diante do Dalai Lama.”231

Com essa atitude, parece altamente improvável que o Dalai Lamaesteja disposto a submeter-se à vontade do povo, um princípio
fundamental de qualquer governo democrático.

Em 1998 a TV nacional suíca (SNTV) noticiou que a Assembleia Nacional tibetana jamais em sua história tomou uma decisão que fosse contra os desejos do Dalai Lama. O jornalista suíco Beat Regli perguntou ao Vice-presidente da Assembleia se seria possível que isso alguma vez acontecesse e ele respondeu com frieza: “Não… não”.232
Como líder espiritual e político não eleito do povo tibetano, a infl do Dalai Lama sobre seu Governo, seu Executivo e seu povo é onipresente. Por causa da posição de autoridade de que desfruta, suas decisões ficam além de qualquer crítica ou até mesmo de um debate sério. De fato, a grande maioria dos tibetanos “sente-se compelida [ao silêncio] só pela mera menção ao nome de seu líder religioso e temporal”.233 Seu controle é tão férreo que quase nenhum tibetano ousaria criticar as atividades do Dalai Lama, com medo das represálias que eles sabem que viriam logo em seguida. Isso fica refletido com clareza na falta de liberdade de expressão na comunidade tibetana no exílio.
Num anúncio publicado no jornal Times of Tibet e na revista Sheja (Conhecimento), amplamente divulgado dentro das comunidades tibetanas, está escrito:

Devemos nos opor sem vacilar a qualquer um que esteja contra o Dalai Lama, fazendo uso de força, dinheiro e posses, quer dizer, fazendo uso de qualquer meio necessário, inclusive da violência.234

SNTV apresenta Tashi Angdu como “o secretário-geral da sociedade que publicou o anúncio pedindo ação impiedosa contra todos os críticos do Dalai Lama. Ele é um conhecido político e presidente do conselho regional tibetano”. Em princípios de 1998, ele confirmou voluntariamente à SNTV, “(…) sua sociedade também ameaça usar a violência contra os críticos do Dalai Lama que não os ouvem”.235
Pouco após haver expressado sua preocupação sobre a proibição do Dalai Lama relativa ao culto de Dorje Shugden, em junho de 1996, um ministro de governo aposentado foi apunhalado e,gravemente ferido, quase morreu.236

Uma imprensa livre é sinal de uma democracia saudável, que oferece vias de expressão e permite a difusão de opiniões diferentes das oficiais. Não há imprensa independente na comunidade tibetana do exílio na Índia. O único jornal independente em Dharamsala, Democracia (Mang-Tso), parou de circular em março de 1996, devido à pressão do governo tibetano. Palden Gyal escreveu no Tibetan News, explicando que o jornal Mang-Tso “(…)foi criado em 1990 por um grupo de intelectuais tibetanos com o objetivo de oferecer notícias tibetanas e internacionais. Também tinha por fi alidade educar os jovens tibetanos sobre a democracia”. Era popular, influente e tinha uma grande circulação. Ele acrescenta:

O jornal está sempre salpicado por críticas a ministros de governo e debates abertos a suas políticas. Então, em maio de 1995, ele publicou um artigo sobre Shoko Asahara, o líder de um culto japonês, enfatizando o fato de ele ter sido amigo do Dalai Lama antes de ser acusado de assassinar onze pessoas num ataque de gás neurotóxico no metrô de Tóquio. O artigo sugeriu que o governo talvez devesse ser mais cuidadoso com quem se relacionasse no futuro. Pouco tempo depois, em março de 1996, o jornal deixou de publicar.237

Dentre as razões dadas pelos editores para o fechamento figuravam “as antipatias subjetivas com relação aos editores, o que dificultava a edição”. Como diz Palden Gyal: “O mero fato de publicar artigos sobre o Dalai Lama que não favoreçam sua imagem pode enfurecer os tibetanos”. Ele também cita Robbie Barnett da Rede de Informação Tibetana, quando fala de publicações que não acatam o discurso do governo: “(…) a antipatia com relação aos editores normalmente aparece em forma de qualquer coisa, desde ameaças de morte até ostracismo e campanhas de difamação”.238 Resumindo, o jornal ousou questionar as atividades do líder tibetano e pagou o preço final.
Como Jamyang Norbu, um influente intelectual tibetano, escrevendo em 1996, diz:

(…) não somente não existe apoio e incentivo para uma imprensa tibetana livre, mas inclusive se pode afirmar que a liberdade de expressão é completamente inexistente na sociedade tibetana no exílio (…) Samdong Rinpoche, o porta-voz do Parlamento tibetano no exílio, (…) declarou (…) que o Parlamento tibetano devia encontrar novas formas de controlar a imprensa.239

Essa intolerância profunda à crítica permeia todos os meios de expressão. Como à conhecida tibetologista Heather Stoddar escreveu:

[um] número considerável de livros novos, escritos em tibetano, tem sido censurado [pelo governo tibetano no exílio] porque eles não estão de acordo com a imagem desejada da sociedade tradicional tibetana. Qualquer discussão séria sobre história ou de possíveis fracassos da sociedade antes de 1959 é um tabu.240

No prefácio de uma coleção de ensaios de Jamyang Norbu, Lhasang Tsering, por duas vezes presidente do Congresso da Juventude Tibetana no passado, escreve:

A proibição de livros pela simples razão de que os escritores expressaram ideias que não estão de acordo com a linha oficial de pensamento – seja ela sobre história ou política
– tem sido uma das maiores manchas do nosso governo.241

É profundamente irônico que um líder de governo de um povo que tem sido tão intensamente ameaçado por um regime totalitário que não aceita crítica, não possa, do seu lado, tolerar a mínima crítica. Houve poucas mudanças nessa questão fundamental da liberdade de expressão desde o êxodo do Tibete, embora já se mantenha contato com sociedades democráticas há 50 anos.

Como ficou evidente, em depoimentos dados ao The Times of India, em maio de 1996, a atitude ideológico-política do Dalai Lama é marxista-socialista, que ele considera como sendo “uma parte do budismo”, não é democracia estilo ocidental; ele rejeita o ocidente porque “(…) pensa unicamente em dinheiro e em como ter lucro”.242 Mesmo após as numerosas atrocidades cometidas em nome do marxismo dentro da antiga União Soviética e por todo o leste europeu, China e Tibete, o ponto de vista político do Dalai Lama ainda permanece inalterado.

O Dalai Lama tem muitas faces, incluindo uma face democrática para os ocidentais e uma face comunista como tentativa de influenciar os chineses. Porém, a face que o Dalai Lama mostra aos ocidentais é falsa. Embora esteja no Ocidente há cinquenta anos, ele não se esforçou verdadeiramente para estabelecer uma verdadeira democracia dentro da comunidade tibetana no exílio; e embora para muitos ocidentais ele seja a principal figura da liberdade tibetana, ele nunca trabalhou de verdade pela independência tibetana e há muito aceitou que o Tibete permaneça sobre o domínio chinês.243 Mesmo que tenha falado em 1988 em Estrasburgo de autonomia tibetanda sob a soberania chinesa, o Dalai Lama continua a alimentar a ilusão entre os tibetanos e em meio à cultura popular ocidental de que ele ainda está trabalhando por um Tibete livre e independente. Seria de se estranhar, então, que ele seja considerado alguém em quem não se possa confiar?

Durante muitos anos, o Dalai Lama fomentou nos assentamentos tibetanos no exílio a esperança de que o retorno a um Tibete livre estava próximo. Uma vez que o Dalai Lama vive em uma sociedade fechada, onde o povo não pode se expressar – sem liberdade de expressão, sem liberdade de imprensa –, ele manteve o mito de que promove um Tibete independente, “a causa tibetana”, mesmo que ele já tenha abandonado esse objetivo político muitos anos atrás.
Esses fatores devem ser levados em consideração em qualquer análise dos comentários do Dalai Lama sobre a democracia. O ponto de vista político que ele expressa para o público ocidental nos EUA e na Europa não é o mesmo que ele expressa na Ásia. A defesa de uma democracia estilo ocidental para o futuro de um Tibete livre é unicamente para o consumo ocidental. O estilo de governo sob o qual ele de fato presidiria se o Tibete algum dia fosse recuperar sua independência estaria longe de ser democrático.