A questão da independência tibetana

Contrariamente à boa disposição com que o Décimo Quarto Dalai Lama defendia o comunismo e apoiava Mao e o governo comunista chinês enquanto estava no Tibete, ao chegar à Índia, como um bom ator, mudou completamente seu papel e começou a defender um Tibete livre, independente, e incentivou reiteradamente os tibetanos a se rebelarem contra a China para alcançar esse objetivo. O que fez com que ele mudasse de ponto de vista de forma tão radical? Será que isso foi uma cortina de fumaça usada para ocultar a vergonha de ter fracassado em obter apoio do povo tibetano para sua ambição de ser o líder de um Tibete comunista? Ou será que ele se sentia intimidado perante o escrutínio público ocidental? Depois de haver visivelmente fracassado em converter os tibetanos à sua ideologia comunista lá nos confins do Tibete, a única maneira como o Dalai Lama poderia seguramente manter sua posição como líder político e espiritual no exílio seria satisfazer os desejos de seu povo – ou pelo menos aparentar estar fazendo isso – e guiá-los a um Tibete livre e independente. Ou seja, basicamente, o que tinha de fazer era desfazer tudo que sua Política Lama havia criado!

Apesar de agora encontrar-se sob o foco de atenção do público internacional, o Dalai Lama não executou as ações de um verdadeiro líder e tampouco trabalhou para satisfazer os desejos de seu povo. Embora a grande maioria dos tibetanos nunca ousasse questionar o Dalai Lama diretamente, fica claro que para eles “a causa tibetana” significa completa independência da China, enquanto para ele significa autonomia parcial em relação à China.

A grande maioria do povo tibetano, tanto dentro do Tibete como no exílio, apoia a independência do Tibete.161

Lhasang Tsering, antigo membro da força de resistência tibetana baseada em Mustang, Nepal, escreve:

(…) não tenho dúvidas de que nosso povo, até mesmo em gerações futuras, continuará lutando e se sacrificando enquanto o objetivo continue sendo a independência. Contudo, não espero que as pessoas façam esse tipo de sacrifício por um objetivo menor. Eu mesmo nunca lutaria para permanecer associado à China. (…)
Enquanto continuarmos a não reconhecer a soberania da China e enquanto nosso objetivo continuar sendo a independência, então, a invasão chinesa no Tibete pode ser vista como uma agressão estrangeira e nossa luta será de proporções internacionais. Mas se nós mudarmos de objetivo e buscarmos algum tipo de conciliação dentro da China, então o assunto muda completamente. Então, como a China sempre afirma, nossa questão será um caso “interno” e não teríamos o direito de buscar ajuda e envolvimento internacional.162

Jamyang Norbu, outro antigo guerrilheiro tibetano e atualmente reconhecido autor e dramaturgo, escreve:

(…) estou convencido de que os tibetanos precisam de independência mesmo que seja somente para sobreviver como um povo. Ano após ano estamos mais próximos da extinção. (…) Nenhum acordo ou nenhum tipo de entendimento com a China poderá impedir isso.
(…) Somente a completa independência oferece alguma esperança para a sobrevivência tibetana (…).163

Tashi-Topgye Jamyangling, um antigo oficial do governo tibetano no exílio e membro da primeira delegação de investigação do Dalai Lama enviada à China em 1979, escreve:

Como Sua Santidade o Dalai Lama sempre diz, a decisão final no que diz respeito ao futuro do Tibete precisa vir dos tibetanos. A escolha é simples: é a independência ou a extinção?164

Entretanto, a despeito da retórica inicial dos primeiros anos do seu exílio advogando um Tibete livre e independente, a independência do Tibete não tem estado de verdade agenda política do Décimo Quarto Dalai Lama faz muitos anos. Já em 1984, em encontros secretos com Beijing, a independência do estado tibetano havia sido descartada em prol de uma região autônoma sob a soberania chinesa.165 O Dalai Lama tomou essa decisão unilateralmente, sem nenhum tipo de referendum popular ou sequer consulta ao seu governo.166

Em abril de 1988, os chineses ofereceram-lhe permissão para retornar ao Tibete na condição de abandonar publicamente o objetivo da independência. Na declaração de Estrasburgo, de 15 de junho de 1988, ele estipulou as condições para seu retorno, que incluíam, como os chineses haviam pedido, uma aceitação da completa soberania chinesa sobre o Tibete, “(…) um tipo de domínio autônomo parecido com o que existiu sob a dinastia Qing”.167 Ao aceitar a soberania chinesa sobre o Tibete, ele perdeu num golpe a possibilidade de um Tibete independente.

O historiador Edward Lazar observou: “A declaração de Estrasburgo foi a rendição dos objetivos mais importantes do povo tibetano (independência e um fim para a ocupação chinesa) (…)”. Renunciou-se a ambas mesmo antes que as negociações começassem. “Seria difícil nos lembrarmos, nos anais da diplomacia, de tanto sendo dado, não por pouco, mas por nada”.168

“Por que”, pergunta Lazar, “mais de cem países reconhecem a OLP [Organização da Libertação Palestina] e nenhum país no mundo reconhece o Tibete? A principal razão para a tolerância internacional com a ocupação do Tibete pela China é que a liderança tibetana tem mantido um padrão consistente de conciliação com relação aos ocupantes chineses e é esse o espírito que é mantido desde o exílio (…). A política oficial de conciliação”, como observa Lazar, “é traduzida numa legitimização do status colonial, um tipo de suicídio nacional”.169

“A própria palavra ’independência‘”, como observa Lazar, “é evitada durante os pronunciamentos oficiais tibetanos e é evitada em encontros”. “Independência” não é uma das centenas de entradas dos índices das centenas de novas autobiografiasdo Décimo Quarto Dalai Lama. A idéia de independência é tão perigosa que só é mencionada empregando-se a palavra “I” em alguns círculos tibetanos.170

A atual política do Dalai Lama de reconciliação com a China é uma mera continuação da sua própria ideologia política, que já ficou clara no momento da ratificação do Acordo dos Dezessete Pontos em 1951.
Fica evidente que, desde o começo, o Dalai Lama apoiou vigorosamente a ideologia comunista e os avanços que ela prometia. Em 1955, depois de seu encontro com Mao, ele disse: “[…] depois de ter deixado Lhasa, ansiava pela nossa reunião. Fiquei deleitado ao vê-lo [Mao] cara a cara e senti que ele era um bom amigo do nosso povo.”171

Na primeira autobiografia do Décimo Quarto Dalai Lama, Minha Terra e Meu Povo, esse entusiasmo é confirmado. Ele diz que sua primeira reunião com Mao foi um “encontro memorável” e o descreve com uma “pessoa notável”.172 O fascínio do Dalai Lama por Mao pode ser visto num assombroso poema que ele escreveu durante sua visita à China em 1954. Na sequência, um trecho:

O grande líder nacional do Governo Central do Povo, Presidente Mao, é um Chakravatin [governante universal] fruto de infinitos méritos. Há muito tempo venho desejando escrever um hino de preces pela sua longa vida e pelo êxito de seu trabalho. Coincidiu que Klatsuang-kergun Lama, do monastério de Kantsu no interior da Mongólia, escreveu-me de tão longe, enviando-me saudações e me pedindo para escrever um poema. Eu concordei em fazê-lo já que isso coincide com meus próprios desejos.

O Décimo Quarto Dalai Lama Dantzen-Jaltso no palácio de Norbulin-shenfu, 1954.

Ó, Triratna (Buda, Dharma e Sanga), que concedem bênçãos
sobre o mundo, Proteja-nos com sua incomparável luz abençoada que brilha
eternamente.

Ó Presidente Mao! Teu resplendor e feitos são iguais aos de Brahma e Mahasammata, criadores do mundo.
Exclusivamente a partir de um número infi de boas ações, um líder como tu pode nascer, que és como um sol iluminando o mundo.

Teus escritos são como pérolas, abundantes e poderosos como a maré alta do oceano que alcança os limites do céu. Ó, honorável Presidente Mao, viva por muito tempo!

Todas as pessoas te veem como bondosa e protetora mãe, eles pintam quadros de ti com os corações repletos de emoção,
Que possas viver neste mundo para sempre e nos mostrar o
caminho pacífico!
Nosso grande país estava sobrecarregado de dor, ataduras e escuridão.
Tu libertaste a todos com teu brilho. Agora o povo está feliz, repleto de bênçãos!

Teu trabalho pela paz é um para-sol branco de joias,
oferecendo sombra ao céu, à terra e à humanidade.
Tua fama é como os sinos dourados do para-sol, que giram
e tocam eternamente no céu!

Nossos inimigos, os sedentos imperialistas, são cobras venenosas e mensageiros do demônio, que se arrastam furtivamente.
És como a intrépida ave “roc” que conquistou a serpente venenosa. A ti todo o poder!

As contruções industriais e culturais que fazem o povo prosperar e derrotar os exércitos inimigos são como um vasto oceano;
Essas contruções irão se desenvolver continualmente até que elas encham este mundo de tanta satisfação quanto há no céu.

A perfeita religião de Shakyamuni (Buda) é como uma
lamparina de pérolas lunares brilhando com intensidade.
É como um ornamento de pérolas perfumadas que vestimos sem proibição. Oh, disso nos orgulhamos!

Tua determinação é como o acúmulo de nuvens, teu chamado é como o trovão,
Deles cai uma chuva oportuna que nutre com fartura a terra!

Da mesma forma que o rio Ganges corre proveitosamente e por toda a terra,
A causa da paz e da justiça irá trazer ilimitada alegria a todos!

Que nosso mundo possa gradualmente tornar-se tão feliz
como o paraíso!
Possa a tocha de nosso grande líder permanecer acesa para sempre.

Possam os poderes dos bondosos bodhisattvas, o Protetor do Dharma, com recursos copiosos e as palavras verdadeiras dos Maharishis transformar essas esperanças em verdade.173

Esses versos de adulação não passam a impressão de alguém que está infeliz com a presença chinesa no Tibete, mas sim exatamente o oposto! Os sentimentos expressos vão muito além do protocolo, revelando, em vez disso, uma genuína admiração por Mao e uma convicção sincera de que o comunismo iria salvar seu povo de suas “ataduras e escuridão”.
Já vimos como até o momento de sua fuga do Tibete, em 1959, o Dalai Lama esteve trabalhando de perto com os chineses. O Dalai Lama “(…) expressou seu mais efusivo apoio aos chineses em discursos e artigos que vão até janeiro de 1959, como Aprendo com a União Sovietica a construir nossa pátria socialista e Luta pelo glorioso avanço do Tibete.”174
Além disso, muitos tibetanos se lembram de que nos anos 1970 o Dalai Lama tentou criar o Partido Comunista Tibetano, com o intuito de disseminar o comunismo entre os tibetanos no exílio. O Dalai Lama apoiou esse grupo que surgiu na época em que ele comumente mencionava esse sistema político com aprovação.175
Em 1996, o jornal Times of India menciona o Dalai Lama dizendo:

Algumas vezes penso que, falando francamente, as teorias
socioeconômicas marxistas podem ser consideradas budistas
– uma parte do budismo… O capitalismo do ocidente simplesmente pensa sobre dinheiro e como obter mais lucro. Minha preocupação principal é encontrar uma relação de trabalho mais próxima com os comunistas.176

Numa entrevista com Pico Iyer que saiu na revista Time em dezembro de 1997, o Dalai Lama se define como “meio marxista, meio budista” e afirma que Mao Zedong era “uma pessoa extraordinária”.177

O marxismo tem sido a referência política para o Décimo Quarto Dalai Lama desde 1950. Fica evidente que muito antes da declaração de Estrasburgo em 1988 e, na verdade, durante todos os anos de exílio, a ideologia política do Dalai Lama tem sido o principal empecilho para o povo tibetano alcançar seu objetivo de um Tibete independente. Como o Dalai Lama disse numa entrevista exclusiva a BBCChinese.com, em 2009, “O governo chinês considera nosso problema como assunto doméstico e nós também”.178
Durante todo esse tempo, nunca houve na visão política do Dalai Lama uma base para se desenvolver um forte compromisso com a ideia de um Tibete independente. Como Lazar ressalta: “(…) já que o objetivo do Tibete não se identifica com a independência, não há uma estratégia geral clara para uma mudança”.179