O lançamento do fime de Hollywood, Kundum, em 1997, criou um renovado interesse pela revolta de março de 1959 e pela épica fuga do Dalai Lama do Tibete. Tratando desses eventos, um artigo na Revista George diz:
A operação foi guiada pelo diretor da CIA Allen Dulles, cuja experiência de guerra no movimento de resistência antinazista inspirou a guerra encoberta tibetana. Porém, o sucesso de sua missão dependia de um agente secreto (…) que ainda não estava nos seus 30 quando ele e Gyalo Thondup, um dos irmãos do Dalai Lama, planejaram a fuga do líder espiritual.364
Para unir os habitantes de Lhasa em apoio aos rebeldes, um boato foi deliberadamente espalhado: de que os chineses estavam prestes a sequestrar e até mesmo matar seu precioso líder espiritual. Uma oportunidade perfeita para promover os boatos surgiu quando o Dalai Lama concordou em assistir a uma apresentação teatral no Campo Militar chinês num dia específico. Grunfeld faz o seguinte comentário:
A China (…) nega enfaticamente que o Dalai Lama tenha sido coagido a escolher essa data. Beijing sustenta que, na verdade, foi o próprio Dalai [sic] que marcou a data e, de fato, o fez um mês antes [itálico de Grunfeld]. Durante muitos anos, esse argumento foi totalmente ridicularizado como sendo uma “propaganda e mentira comunista” até que Dawa Norbu reconheceu publicamente que um antigo oficial tibetano havia confidenciado para ele que a versão chinesa estava correta. Quando confrontado com essa contradição, em 1981, o Dalai Lama admitiu que sua história original estava incorreta, concordando que ele havia escolhido a data semanas antes do acontecimento.365
Na época, o boato de que a vida do Dalai Lama estava ameaçada espalhou-se como fogo. No dia 10 de março de 1959, entre dez e trinta mil tibetanos, juntamente com o completo exército tibetano, convergiram a Norbulingka – o palácio de verão de 300 anos, onde o Dalai Lama estava residindo.366
A atmosfera ficava mais pesada à medida que as pessoas se reuniam para frustrar o temido plano dos chineses. Um oficial monástico tibetano que chegou ao palácio para acalmar a situação foi apedrejado até a morte. Após o Dalai Lama assegurar que ele não visitaria o campo do ELP (Exército de Libertação do Povo), a multidão se dispersou parcialmente. Entretanto, naquela noite um encontro entre líderes rebeldes e setenta membros do governo tibetano foi realizado fora do palácio para apoiar uma resolução que declarava que o Tibete não mais reconhecia a autoridade chinesa, repudiando, assim, o Acordo dos Dezessete Pontos e fazendo um chamado para a expulsão dos chineses do Tibete.367
Os rebeldes colocaram guardas no palácio e disseram aos ministros que eles não poderiam sair. Também erigiram barricadas ao norte de Lhasa, na principal estrada para a China. Entendendo a natureza incendiária da proclamação, o Dalai Lama convocou um encontro com os setenta membros rebeldes de seu governo.368
Ele lhes disse que o General Tan não o havia forçado a aceitar o convite [para a peça de teatro]. Ele havia, na verdade, sido consultado e dera seu consentimento antes de o convite ter sido formalmente anunciado. Ele lhes assegurou que sua segurança pessoal não corria nenhum perigo por parte dos chineses. Apesar de terem reconhecido que não podiam desobedecer a suas ordens, eles, de todo modo, as ignoraram.369
A imagem de um Dalai Lama assediado e praticamente refém dos rebeldes está refletida em uma notável série de cartas trocadas entre ele e o general chinês Tan Kuan-san. Primeiramente, assumiu-se que as cartas:
(…) não passavam da mais habilidosa das falsificações. Essa pressa em julgar causou bastante vergonha quando a China publicou fotocópias das cartas, metade delas com a letra do Dalai [sic], o que obrigou o clérico a confirmar sua autenticidade.370
Após ficar sabendo que o Dalai Lama não podia sair de Norbulingka para assistir à apresentação teatral no acampamento chinês, o comandante chinês escreveu para ele no dia 10 de março:
Respeitável Dalai Lama,
É de fato muito bom você querer vir à Zona de Comando Militar. Você é muito bem-vindo. Porém, já que intrigas e provocações de reacionários têm imposto grandes dificuldades, talvez seja aconselhável que você não venha.
Saudações cordiais.
Tan Kuan-san371
O Dalai Lama respondeu no dia 11 de março: Caro Comissário e camarada político Tan,Tinha a intenção de ir à Zona de Comando Militar para assistir à apresentação teatral de ontem, mas não pude fazê-lo por ser obstruído por algumas pessoas, lamas e leigos, que foram instigados por uns poucos maus elementos que não conheciam os fatos, o que para mim foi um vexame indescritível. Estou muito aborrecido e preocupado e não sei o que fazer. Quando li sua carta, alegrei-me muito – você não se importa nada.
Elementos reacionários e malvados estão executando atividades que me põem em perigo sob o pretexto de garantir minha segurança. Estou tomando medidas para acalmar as coisas um pouco. Em alguns dias, quando a situação se tornar estável, vou certamente me encontrar com você. Caso tenha alguma diretiva interna para mim, por favor, transmita-a com franqueza através deste mensageiro.
O Dalai Lama,
Escrita com meu próprio punho e letra.372
Como resposta às fortificações levantadas pelos rebeldes e o grande número de guerrilheiros com metralhadoras ao longo das estradas nacionais, o General Tan escreveu ao Dalai Lama mais tarde naquele dia, 11 de março, explicando que as forças chinesas haviam pedido aos rebeldes para saírem imediatamente das estradas ou então enfrentarem as consequências.373
Como resposta, datada de 12 de março, o Dalai Lama escreveu:
(…) As atividades fora da lei do grupo de reacionários me causam preocupação e dor infinitas. Ontem eu disse ao kasa [Kashag, ou Gabinete Tibetano] para ordenar a imediata dissolução da conferência ilegal [do movimento de resistência tibetano clandestino] e a imediata retirada dos reacionários que arrogantemente se mudaram para Norbulingka sob o pretexto de me proteger. Quanto aos incidentes de ontem e de anteontem, que foram organizados com o pretexto de assegurar minha segurança e que deterioraram gravemente as relações entre o Governo Central do Povo e o governo local, estou fazendo todos os esforços possíveis para lidar com eles.374
Em sua resposta, no dia 15 de março, o General Tan escreveu:
(…) Estamos muito preocupados com a sua atual situação e segurança. Caso esteja pensando que seja necessário e possível libertar-se do perigo que representa estar mantido cativo dos traidores, convidamo-lo cordialmente e a seu séquito a vir e permanecer por um curto tempo na Zona de Comando Militar. Estamos dispostos a assumir total responsabilidade por sua segurança. Com respeito a qual é o melhor caminho a ser seguido, isso é inteiramente de sua escolha.375
Dia 16 de março, o Dalai Lama escreveu sua terceira e última carta para o General:
Caro Comissário e camarada político Tan,
Acabei de receber sua carta datada do dia 15, às três horas. Estou muito feliz que você esteja tão preocupado com minha segurança e lhe agradeço por isso.
Anteontem, no quinto dia do segundo mês de acordo com o calendário tibetano, fiz um discurso para mais de setenta representantes dos funcionários do governo, instruindo-os a partir de vários ângulos, convidando-os a considerarem os interesses a curto e a longo prazo e a se acalmarem, caso contrário minha vida estaria em perigo. Depois dessa forte censura, a situação melhorou ligeiramente. Embora seja ainda muito difícil lidar com as condições daqui e de fora, estou cuidadosamente tentando desenhar uma linha separando as pessoas progressistas dentre os funcionários do governo daqueles que se opõem à revolução. Em alguns dias, quando houver forças suficientes em que confie, abrirei caminho até a Zona do Comando Militar. Quando esse dia chegar, enviarei primeiro uma carta. Peço que tome medidas confiáveis. Qual é o seu ponto de vista? Por favor, sempre me escreva.
O Dalai Lama.376