Apêndice 7: A carta “As presas do mangusto”

Esta carta anônima foi entregue pelos tibetanos a uma inglesa que agora vive na Itália, enquanto ela viajava pelo Nepal em setembro de 1995. Grande parte dessas informações é bem conhecida no interior da comunidade tibetana na Índia e no Nepal.
Esta carta, chamada de “As presas do mangusto”, foi enviada ao Dalai Lama:

Sua Santidade, em 1959, seu país foi invadido pelo exército comunista chinês. Você e cerca de 90.000 tibetanos foram obrigados a fugir para a Índia e o Butão. Nessa época, Sua Santidade começou a assumir a responsabilidade principal pelo Tibete. Olhando para o que aconteceu desde então, vemos que os refugiados tibetanos receberam ajuda da Cruz Vermelha e da Índia. Eles ganharam terras para se estabelecerem. Os tibetanos sobreviveram e conseguiram se sair muito bem e ter uma vida confortável.
Foi Sua Santidade quem estabeleceu o governo no exílio. Por isso, gostaria de relembrá-lo do que aconteceu sob seu mandato:

1. O problema de Dudjom Rinpoche (o líder espiritual da Tradição Nyingma) criado pelos ciúmes de seu governo: seu governo fez o governo indiano acusar Dudjom Rinpoche de ser um espião chinês e fez com que ele fosse preso em 1963 em Siliguri, depois de ter compartilhado extraordinários ensinamentos religiosos em Kalimpong.
2. O problema dos Treze Assentamentos tibetanos se unindo contra seu governo. Em conexão com o que acontecera a Dudjom Rinpoche e a outros, treze assentamentos tibetanos se uniram contra seu governo no exílio em Dharamsala de 1964 até 1981.
O problema de seu governo ter dividido os guerrilheiros tibetanos em Mustang. Na verdade, eles foram originariamente organizados pelo seu governo com a ajuda da CIA. Em 1969, como consequência da política de Nixon com relação à China, você provocou uma luta entre seus membros pelo controle das armas, o que finalmente os levou à destruição.

O problema do Sr. Alo Choedzoe com seu Ministro da Economia. Seu governo enganou a fábrica do Sr. Choedzoe. O problema do assassinato do Sr. Gongtang (Tsultrim) perpetrado pelo seu governo em 1975. Ele era o líder dos Treze Grupos.

O problema relacionado com o falecido Gyalwa Karmapa Rigpay Dorje (o líder espiritual da Tradição Kagyu) por causa de sua influência e pelo fato de os Treze Grupos terem-no apontado como seu líder espiritual.

O problema ligado ao mal-entendido entre Sua Santidade e seu tutor Yongdzin Trijang Rinpoche (um dos principais guias espirituais da Tradição Gelug) por causa das calúnias de seu irmão.

O problema da Associação Tibetano-mongol de Taiwan. Você estava ganhando dinheiro enviando seu irmão, Sr. Dondrub, para Taiwan para trafi armas entre Taiwan, Paquistão e Burma. Por causa do perigo de essa informação vazar publicamente, Sua Santidade afirmou que Taiwan apoiava a China com relação à questão tibetana. Portanto, para impedir os tibetanos de irem a Taiwan, você acusou todos que viajaram a Taiwan, até aqueles engajados unicamente em negócios pessoais, de passar para o lado da China.

O problema de Kunzang Lama ter apontado falhas em seu governo. Em 1989, o Sr. Kunzang Lama descobriu que seu governo havia recebido uma grande quantidade de dinheiro de uma Associação Tibetano-mongol em Taiwan e, por essa razão, ele acusou seu governo.

O problema atual da reencarnação do Karmapa. Você apoia o candidato escolhido pela China comunista; isso causa grandes dificuldades na política tibetana.
O problema de Chu Shi Gang Druk [Organização Khampa “Quatro Rios, Seis Montanhas”] ter encontrado uma nova direção para o futuro do leste do Tibete. Você fez um acordo secreto com a China comunista, oferecendo-lhe a área de Kham em troco de benefício pessoal. Chu Shi Gang Druk descobriu isso e o resultado são os contínuos conflitos pesados.

Durante os últimos quarenta anos, seu governo no exílio criou problemas sem parar. No que se refere a Sua Santidade, o que tem feito durante esse tempo? Sua Santidade tem tratado seu próprio povo tibetano como inimigo e, ao invés de trabalhar para um Tibete democrático, estabeleceu como principal responsabilidade desafiar seu próprio povo. Se Sua Santidade tivesse se concentrado em criar uma verdadeira democracia e dessa forma tivesse desistido da preocupação de manter seu próprio poder religioso e político, esses problemas não estariam ligados ao seu governo e não seriam tão recorrentes. Como isso aconteceu? Se Sua Santidade tivesse tentado ser como Mahatma Gandhi, como repetidas vezes mencionou, todos esses problemas teriam sido de seus fi os – e não seus, o pai. Esses problemas não surgiram graças aos esforços de trabalhar pela liberdade do Tibete, mas sim graças a Sua Santidade tentar proteger seu próprio poder.

Agora, gostaria de comentar mais sobre o que realmente aconteceu. Primeiramente, Sua Santidade possuía boas intenções. Em 1959, era jovem e naquela época havia grandes chefes de estado, como Mahatma Gandhi, Johala Nehru, J. F. Kennedy. Para Sua Santidade era difícil ser o líder do Tibete, mas Sua Santidade também era dinâmico. É graças a isso era capaz de desafios o poder da China vermelha. Sentia alegria em comprometer-se em ser o líder número um do Tibete. Seu plano era transformar o Tibete num país moderno e democrático como tantos outros países do mundo. Entretando, Sua Santidade ainda assim se manteve ortodoxo e se agarrou a sua posição de líder religioso.

No começo, Sua Santidade expulsou os funcionários hierárquicos que o acompanharam do Tibete porque era evidente que não iriam sacrificar suas posições de prestígio. Eles não aceitariam a democracia e a modernização, mas, contrariamente, iriam se opor a qualquer reforma. Também foi enfaticamente contra o restabelecimento no exílio, novamente, do sistema ortodoxo de grandes instituições monásticas com centenas de monges. Entretanto, Sua Santidade não foi bem- sucedido e qual foi a real causa disso?

A causa é a doença invisível que ainda está aí e que imediatamente se desenvolve quando certas condições se reúnem. E que doença é essa? É o agarramento ao seu próprio poder. É um fato que, mesmo naquela época, se alguém houvesse tentado instaurar a democracia Sua Santidade não teria aceitado. O costume de ser o poderoso chefe do Palácio de Potala despertou e mostrou seu lado feio.

Olhe para o exemplo de Mahatma Gandhi que serviu seu país desinteressadamente e conseguiu instituir uma democracia pura no seu grande país, a Índia. O segredo por detrás do seu sucesso consistiu em que entendeu, desde o princípio, que se devem eliminar por completo todos os laços e apegos a sua própria vida e bem-estar pessoal. Se permanecer nem que seja uma pequena preocupação pessoal, ela pode surgir a qualquer momento e destruir tudo, da mesma forma que um pequeno fósforo é capaz de incendiar uma floresta inteira.

Por outro lado, observe Stalin e o Presidente Mao. Eles não sabiam que o egoísmo precisa ser removido para poder servir à nação corretamente. Quando eles chegaram ao topo do poder, ficaram tão preocupados em se agarrar a ele que se tornaram paranoicos. Para eliminar o que eles viam como perigosas ameaças, tiveram que matar as pessoas com quem trabalharam desde o começo. Então, as pessoas que sabiam sobre essas matanças tiveram que ser mortas também. Isso continuou assim até que centenas, milhares e até milhões de pessoas tiveram que ser mortas.

Buda ensinou que uma pessoa precisa de “visão correta”, “meditação correta” e “conduta correta.” Para alcançar isso, uma pessoa precisa se comprometer e se dedicar a uma mente pura, uma mente de um bodhisattva. O resultado, bom ou ruim, do trabalho de alguém, seja religioso ou político, depende do grau da dedicação dessa pessoa. Sua Santidade deseja ser um grande líder, mas não sabe que para satisfazer esse desejo, “um voto político bodhisattva” é necessário. Por isso, contrariamente, Sua Santidade ingressou no traiçoeiro “caminho político da acumulação” (tsog lam) e isso o levou continuamente a um caminho errôneo. Sua Santidade acredita que para ser um grande líder é preciso assegurar, antes de qualquer outra coisa, sua própria posição, e sempre que alguma oposição surgisse, teria que se defender, e isso se tornou contagioso.

Quando falo das consequências de seu trabalho, não estou me referindo a suas vitórias pessoais obtidas para sua própria fama. Estou calculando quanto benefício o povo tibetano obteve para seus objetivos futuros. Por exemplo, quando nos anos 60 Sua Santidade tentou se livrar da influência do poder de grandes lamas como Dudjom Rinpoche e o Karmapa, os efeitos colaterais foram sentidos por muitos Lamas tibetanos, o que fez com que eles se unissem em oposição. Sua Santidade não pôde se conter e teve que produzir uma grave ruptura na comunidade tibetana. Ademais, para desafiar lamas usou a religião para seus fins. Por esse motivo Sua Santidade teve de desenvolver a fé cega dos tibetanos. No final está cometendo os mesmos erros dos quais acusava outros lamas. Por exemplo, Sua Santidade começou a política das iniciações públicas de Kalachakra. Normalmente a Iniciação de Kalachakra não é concedida em público. Depois, Sua Santidade começou a usá-la continuamente de forma grandiosa para sua política.

O resultado é que agora os tibetanos recorrem a mesma mistura suja entre política e religião que Sua Santidade criticava com tanta precisão no começo. Os acontecimentos atuais com relação à controvérsia da reencarnação do Karmapa é um desses exemplos. Seus ministros teriam dito a Sua Santidade que um Karmapa estabelecido nos Himalaias, devido a sua grande popularidade nessa região, afetaria o seu nome e poder como já ocorrera anteriormente. Se o governo tibetano do Dalai Lama no exílio realmente é a favor da independência do Tibete, pela democracia do Tibete e pela civilização do Tibete, como uma organização privada, como a do Karmapa, poderia afetar seu governo? Não faz sentido algum. Ou será que a China comunista planejou uma complicada conspiração política para estabelecer um Karmapa no Tibete? Sua Santidade, o Dalai Lama, ao apoiar (o candidato chinês), está prejudicando imensamente o futuro do Tibete. Sua Santidade pensa que se durante sua vida não pode ser o líder dos tibetanos no Tibete, pelo menos pode manter sua posição de líder do Tibete na Índia, usando o Dharma e a política. Para consegui-lo, o futuro do Tibete depois de sua morte não conta nada para Sua Santidade, contanto que possa manter seu poder agora. É realmente triste.

Vamos usar outro exemplo. Entre 1985 e 1986, Nyingma Shingchong Tulku do Monastério Dzongnang, Dzongnang Tulku de Clementown, Dehradun, e o Sr. Lingtsang Gyalsaw foram ao Tibete como convidados do governo comunista chinês. Nessa época seu governo tibetano no exílio exigiu de nós, tibetanos, que nos rebelássemos contra eles porque estavam do lado dos chineses e assim fizemos, atacando-os duramente. Agora, Situ Rinpoche e Gyaltsab Rinpoche, da Tradição Kagyu, fazem de tudo com respeito à reencarnação do Karmapa a favor da política da China comunista. Ao invés de objetar, Sua Santidade está dando a eles seu total apoio. Não é surpreendente? Foi isso o que quis dizer quando antes mencionei que Sua Santidade sempre dá prioridade a seu próprio bem-estar e poder, mesmo à custa do futuro do Tibete. Não estou tentando lhe dizer que Sua Santidade deveria estar preocupado com os futuros Dalai Lamas no que se refere a eles serem líderes do Tibete. Estou lhe dizendo que Sua Santidade é extremamente desonesto e hipócrita.

Quando Katok Shingchong Rinpoche e os outros foram ao Tibete e proclamaram que eles iriam conseguir a região autônoma de Kham de volta da China, seu governo no exílio nos orientou para desafiá-los e isso nós fizemos muito bem. Hoje em dia, Sua Santidade aceitou tanto secreta como abertamente que a Região Autônoma do Tibete e Kham estão sob controle da China. Sempre que Sua Santidade apresenta objeções, sejam elas para Katok Shingchong Tulku anteriormente ou para Chu Shi Gang Druk, atualmente, o faz somente para si mesmo e unicamente movido por ciúmes e pelo desejo de poder. É muito triste. Atualmente Sua Santidade já concedeu a Iniciação de Kalachakra tantas vezes que transformou o povo tibetano num bando de ovelhas. Sua Santidade tem como forçá-los a ir de um lado ao outro segundo seus desejos. Em suas próprias palavras,

Sua Santidade sempre diz que deseja tornar-se como Gandhi, mas suas ações são típicas de um fundamentalista religioso que usa a fé para propósitos políticos. Sua imagem é a do Dalai Lama, sua boca é a de Mahatma Gandhi e seu coração é aquele de um ditador religioso. Sua Santidade é um mentiroso e é muito triste que os tibetanos, além de todo o sofrimento a que já estão submetidos, ainda tenham um líder assim. Os tibetanos tornaram-se fanáticos. Eles dizem que o nome do Dalai Lama é mais importante que o ideal do Tibete. Sua Santidade alcançou seu objetivo. Resumindo, se alguém como o Sr. Dawa Norbu, que se dedica inteiramente à política tibetana, diz algo muito importante para a causa tibetana, Sua Santidade envia seus homens para secretamente encorajar seu grupo de devotos fanáticos a protestarem e a espalharem a falsa informação de que o Sr. Dawa Norbu está contra o Dalai Lama, e assim por diante. Simultaneamente Sua Santidade aparece publicamente e elogia esse homem.

Devido a esse jogo duplo, nem uma só pessoa dedicada pode parecer estar fazendo algo para o bem do Tibete. Sua Santidade já está demasiadamente confiante de que pode usar a Iniciação de Kalachakra para consertar tudo de errado que fez, e, é um fato, funciona, porque a situação do Tibete hoje em dia está baseada em fé cega e palavras vazias.

Peço com meus olhos cheios de lágrimas, por favor, se Sua Santidade quer ser como Gandhi, não transforme a situação tibetana em algo similar ao que existia na Europa no século XVII sob o domínio da Igreja.