O lançamento do filme de Hollywood Kundun, em 1997, suscitou novo interesse sobre a fuga do Dalai Lama do Tibete em 1959. Uma cuidadosa investigação sobre as etapas da fuga revela uma variedade de versões conflituosas do Décimo Quarto Dalai Lama, que, quando consideradas em conjunto, expõem uma verdade comum – o Décimo Quarto Dalai Lama é um mentiroso sem- vergonha e mestre na criação de sua própria realidade fi diante da verdade. O fato de que o líder do povo tibetano era um simpatizante comunista e um admirador de Mao colocava aqueles que se sublevavam contra os chineses numa posição muito delicada. Para os rebeldes, tornou-se imperativo retirá-lo de Lhasa e cortar sua conexão com os chineses.
A imagem de um Dalai Lama assediado como suposto prisioneiro, não dos chineses, mas dos rebeldes tibetanos, reflete-se numa série de surpreendentes cartas trocadas entre ele e o general chinês Tan Yuan-san (ver Apêndice 1). Em Lhasa, por volta de 4 da manhã do dia 17 de março de 1959, duas granadas de morteiro caíram sem causar danos num pântano dentro do terreno do palácio. Os tibetanos dizem que elas foram lançadas do acampamento chinês, mas isso sempre foi motivo de debate. Grunfeld assinala que durante aquele período o Dalai Lama:
(…) escrevia ao General Tan, informando os chineses do seu apoio e de seus planos de se mudar para seu acampamento. Por que os chineses iriam disparar tiros, precipitando, dessa forma, uma crise? Por outro lado, os rebeldes, sem dúvida incomodados pela correspondência Dalai Lama-Tan,precisavam de uma grande justificativa para fazer com que ele finalmente rompesse com os chineses. O mais lógico é que as granadas viessem dos rebeldes.144
As granadas dos morteiros criaram pânico no palácio e o Dalai Lama pediu o auxílio de seu oráculo. Mas qual oráculo ele consultou? Existem diferentes versões; mais de quarenta anos depois o Dalai Lama declara, em sua mais recente autobiografia, que justo antes das duas granadas de morteiros serem atiradas ele consultou o oráculo de Nechung:
Novamente busquei o conselho do oráculo. Para minha surpresa, ele gritou. “Vá! Vá! Esta noite!” O médium, ainda em transe, cambaleou para frente e pegando caneta e papel escreveu com bastante clareza e explicitamente o caminho que devia tomar para deixar Norbulingka e chegar até a última cidade tibetana antes da fronteira. Suas indicações não eram aquelas esperadas. Tendo feito isso, o médium, um jovem monge chamado Lobsang Jigme, colapsou num desmaio, significando que Dorje Drakden havia deixado seu corpo.145
Testemunhas oculares ainda vivas, entretanto, dizem que o Dalai Lama não consultou o oráculo de Nechung, mas sim o oráculo de Dorje Shugden.146 Em 1998, a TV Nacional Suíça entrevistou Lobsang Yeshe, o assistente do antigo abade do Monastério Sera, que acompanhou o Dalai Lama na sua fuga do Tibete. Lobsang Yeshe afi mou que ele foi até o oráculo de Dorje Shugden para pedir instruções exatas sobre a fuga. No programa da TVNS:
Lobsang Yeshe conta que o oráculo forneceu instruções precisas sobre como e por qual caminho a fuga deveria acontecer, tendo os monges como guarda-costas.147
Helmut Gassner, por muitos anos o tradutor alemão para o Dalai
Lama, também assinalou que:
(…) o camareiro do Dalai Lama, Kungo Phala (…) organizou a fuga de Sua Santidade do palácio de verão Norbulingka (…). As preparações para a fuga foram feitas em sigilo absoluto e seguindo estritamente as intruções fornecidas pelo [oráculo de] Dorje Shugden. Eu perguntei a ele [Phala] que pensamentos ele tinha em mente quando passava pela multidão rodiando o palácio de Norbulingka com o Dalai Lama fantasiado de criado bem atrás dele. Ele disse que tudo aconteceu exatamente como o oráculo de Dorje Shugden do monastério de Panglung havia predito (…).
De acordo com testemunhas confiáveis que conheço e consultei, o oráculo [de Nechung] não providenciou nenhuma ajuda naquela ocasião. O oráculo de Estado só descubriu no dia seguinte que havia sido deixado para trás, após o Dalai Lama e seu séquito terem fugido.148
Esse último depoimento é sustentado pelo testemunho do médium do oráculo Nechung em pessoa, com exceção de que ele diz ter descoberto somente três dias depois! Em Exílio da terra das neves, Lobsang Jigme, o médium do oráculo Nechung, diz que ele estava doente naquela época e não diz nada sobre o Dalai Lama ter consultado Nechung ou de ter dito a ele para ir embora naquela noite. Depois uma invocação realizada no dia 20 de março, três dias depois de o Dalai Lama ter escapado, Lobsang Jigme e seus assistentes, “todos eles ficaram em silêncio refletindo sobre outra revelação: a assombrosa notícia da fuga do Dalai Lama de Norbulingka (…)”.149 Isso contradiz claramente o relato do Dalai Lama.
Ademais, esse testemunho mostra a pouca conisderação e importância que se concedia ao oráculo de Nechung naquele momento, já que, mesmo doente, viu-se obrigado a escapar sozinho do Tibete. Também talvez ajude a explicar o subsequente ressentimento do oráculo de Nechung com relação ao oráculo de Shugden e, por extensão, a Dorje Shugden.
Fica, portanto, evidente que muito do que o Dalai Lama tem dito sobre sua fuga do Tibete é falso. Muito tem sido escrito sobre sua dramática fuga – como, a qualquer momento, os chineses poderiam tê-lo capturado, como foram valentes os soldados e quão árdua foi a viagem. Sem embargo, agora se sabe de dois pontos omitidos nessa saga popular. O primeiro deles é que o grupo foi acompanhado por um operador treinado pela Agência Central de Inteligência dos EUA (CIA) que mantinha contato por rádio com o canal da CIA durante toda a fuga. Como foi relatado na revista americana George Magazine:
Por volta das 3 da manhã do dia 18 de março, eles descansaram por algumas horas próximo à passagem de Che-La, que separava o vale de Lhasa do vale de Tsangpo. Foi ali que a primeira mensagem codificada de rádio sobre a evolução do Dalai Lama foi transmitida do Tibete ao posto de escuta da CIA em Okinawa, Japão. A mensagem foi retransmitida para a sede da CIA próxima à Washington, D.C., onde Allen Dulles aguardava pelas notícias da viagem do Dalai Lama. Em breve Dulles iria apresentar um breve relato ao Presidente Eisenhower. A guerra pela independência do Tibete estava prestes a começar.150
O envolvimento da CIA não se limitou a operadores de rádio:
(…) o Dalai Lama estava acompanhado por um Kampa que havia sido treinado e equipado com uma câmera cinematográfica e suficiente filme a cores para gravar toda a fuga. Os americanos utilizaram um avião Lockheed C130
– especialmente modificado para viajar pela fina atmosfera do Tibete – para lançar comida e forragem para o grupo do Dalai Lama e puderam fazê-lo somente graças ao treinamento de outros Khampas que aprenderam a colocar painéis sinalizadores na neve como alvos para os pilotos.151
Como Grunfeld citou,
(…) essa fantástica fuga e sua grande importância têm sido
ocultadas nos arquivos da CIA como um dos sucessos dos quais não se fala. O Dalai Lama nunca teria se salvado sem a participação da CIA.152
Outra característica dessa fuga mítica que raramente é divulgada é que os chineses afirmam que deliberadamente permitiram ao Dalai Lama escapar. Dois visitantes britânicos ao Tibete em princípios de 1960 relatam que o grupo do Dalai Lama foi seguido por um avião de observação e que nenhuma tentativa foi feita para perseguir a lenta comitiva, que incluía a mãe do Dalai Lama, pessoas velhas e crianças.153 Essa declaração é crível, pois a China foi a primeira a anunciar sua chegada à Índia, o que causou grande constrangimento ao governo indu. Os chineses também afirmam que Mao deu ordens para que o ELP permitisse ao líder tibetano cruzar a fronteira. Relata-se que Mao Zedong disse ao embaixador soviético em Beijing, “se nós o tivéssemos capturado, teríamos causado uma rebelião no Tibete”.154
A imprensa ocidental e a indiana reagiram imediatamente com imenso júbilo diante dos eventos dramáticos que ocorriam no topo do mundo. Um jornalista, escrevendo para a revista Atlantic, relatou como:
Kalimpong ficou repleta de jornalistas de todas as partes do mundo, que eram inundados por telefonemas de editores frenéticos implorando por relatos coloridos de monastérios em chamas. Essa busca por “informações” foi tão avassaladora que se ouviu um repórter de um grande jornal britânico declarar com desespero, “O que eles querem é ficção. Pura ficção. Pois bem, Deus do céu, ficção é o que eles vão ter”.155
Grunfeld comenta que “(…) ficção é o que eles receberam. Circulavam histórias de que entre mil e cem mil tibetanos haviam sido assassinados”. A histérica avidez por notícias era tão grande que os correspondentes enviavam histórias que não haviam nem sequer sido testemunhadas.156
O Dalai Lama pessoalmente contribuiu para a visão predominante de que os chineses causaram destruição e caos, descrevendo o Palácio de Norbulingka depois da rebelião como “uma ruína deserta cheia de cadáveres”.157 Ele escreveu em sua autobiografia:
O bombardeio começou às duas da manhã do dia 20 de março, 48 horas após eu haver saído e antes de os chineses terem descoberto que havia ido embora. Durante todo o dia, eles bombardearam Norbulingka e depois apontaram sua artilharia para a cidade, para Potala, para o templo e para os monastérios vizinhos. Ninguém sabe ao certo quantos habitantes de Lhasa foram mortos, mas milhares de corpos podiam ser vistos dentro e fora de Norbulingka. Alguns dos principais prédios dentro de Norbulingka foram praticamente destruídos e todos os outros foram danificados em maior ou menor grau, (…). No grande monastério de Sera havia a mesma inútil e injustificada devastação.158
O Dalai Lama vai mais além e afirma que os soldados chineses procuraram por ele dentre os cadáveres em Norbulingka e que, não o tendo encontrado, “nem vivo, nem morto, continuaram a bombardear a cidade e os monastérios”, matando deliberadamente “milhares de pessoas que só estavam armadas com pedaços de pau, facas e algumas armas de baixo calibre contra a artilharia (…)”.159
Ainda, alguns europeus que visitaram Lhasa pouco tempo depois dessa “injustificada destruição” relatam poucos danos na cidade, em Potala, no monastério de Sera ou em Norbulingka. De fato, em 1962, os Gelders participaram de um feriado festivo nos terrenos de Norbulingka e não relataram nenhum sinal de graves danos. O livro de suas viagens inclui uma fotografia de um deles sentado nas escadarias de uma das residências favoritas do Dalai Lama no Palácio, o Chensel Phodrang, com todo seu conteúdo meticulosamente preservado.160
Com base em tudo isso, podemos ver que o Dalai Lama mentiu repetidamente sobre os fatos relativos à sua fuga do Tibete. Essas mentiras têm sido alimentadas desde então pelo governo tibetano no exílio e perpetuadas pela mídia mundial, que parece ávida por acreditar em qualquer coisa que o Dalai Lama diga, retratando-o
como uma vítima da agressão chinesa.