Em 1979, o Primeiro Ministro da República Popular da China, Deng Xiaoping, convidou o Dalai Lama para enviar delegações de investigação ao Tibete e iniciar um diálogo no qual, “fora a questão da total independência, todas as outras questões poderiam ser tratadas, chegando-se a acordos”. Beijing acrescentou a essa iniciativa dois gestos conciliatórios, que incluíam permissão para a recuperação da cultura e religião tibetanas e medidas para aumentar o padrão de vida dos tibetanos.180 O Dalai Lama enviou três delegações de investigação ao Tibete entre 1979 e 1980 e negociações secretas ocorreram em Beijing em 1982 e 1984. Porém, as negociações foram infrutíferas.
Com a repentina ascenção da China como uma poderosa potência mundial no cenário político e econômico, nos anos 1980, a situação difícil do Tibete (e de Taiwan) possibilitou aos ocidentais fazerem duras críticas à China. Sob esse ponto de vista, o Dalai Lama transformou-se num fantoche nos conflitos posteriores entre a China e o ocidente. Confiante com o apoio recebido dos EUA e Europa, em 1987, o Dalai Lama durante discursos em Washington e Estrasburgo, repentinamente, começou a argumentar que a ocupação chinesa era ilegal e que o “Grande” Tibete deveria se converter em uma entidade política autogovernada e sob a égide de uma constituição democrática.181
Incentivados pela campanha do Dalai Lama nos EUA, monges em Lhasa fizeram manifestações protestando contra a ocupação chinesa. Vários monges foram presos e um grande amotinamento eclodiu. Após uma série de outras manifestações e motins em 1988 e 1989, Beijing instituiu a lei marcial e introduziu uma série de políticas linha-dura, que limitaram a expressão cultural e religiosa. Também deu início a um programa de rápido desenvolvimento econômico no Tibete.182
Beijing, de certo modo, inverteu o jogo com o Dalai Lama, e suas vitórias em campanhas internacionais se tornaram cada vez mais pírricas. A iniciativa internacional obteve ganhos significativos para os exilados no ocidente e incitou os tibetanos no Tibete a mostrarem seu apoio ao Dalai Lama, mas não pôde obrigar a China a mudar sua postura, a qual desempenhou um papel importante ao precipitar a nova política linha-dura que está transformando a natureza do Tibete.
Atualmente Beijing tem pouco interesse em negociações com o Dalai Lama. Eles têm a impressão de que ele não quer chegar a acordos políticos que eles possam aceitar (…).183
A morte inesperada do Panchen Lama no Tibete, em janeiro de 1989, produziu outra iniciativa chinesa, um convite ao Dalai Lama para participar dos serviços funerários em Beijing, durante os quais conversas informais poderiam acontecer.
O Dalai Lama recebeu um convite repentino para visitar a China sem ter que lidar com as questões complicadas de protocolo político.
(…) O Dalai Lama e seus funcionários, entretanto, relutaram em aceitar o convite. (…) com as coisas aparentemente funcionando bem do seu lado, os líderes do exílio persuadiram o Dalai Lama a optar pelo caminho mais seguro e declinar do convite (…). Muitos olham para trás e identificam nisso o desperdício de uma das oportunidades mais importantes no período posterior a 1978.184
Mais recentemente, o Dalai Lama adotou um comportamento contraditório, incorporando um dia um tom conciliatório com relação aos chineses185 e oferecendo cada vez mais concessões186 e, no dia seguinte, acusando-os de “genocídio cultural”187, de terem transformado o Tibete “num verdadeiro inferno”188 e comparando o governo chinês aos nazistas189.
Desde 2002, foram realizadas oito rodadas de negociações entre os representantes do Dalai Lama e o governo chinês. O Dalai Lama diz que “as negociações não produziram nenhum resultado tangível”190. Portanto, segundo as próprias palavras do Dalai Lama, nos 30 anos de negociações com Beijing, ele não
obteve nada para seu povo.
A razão para isso, de acordo com os chineses, é a falta de sinceridade do Dalai Lama. O Ministro das Relações Exteriores chinês, Jiang Yu, disse em abril de 2008:
O Governo Central mostrou grande sinceridade e paciência no que diz respeito às negociações com o Dalai. Entretanto, o partido do Dalai não respondeu de forma sincera e compreensiva. A porta para o diálogo está aberta, mas é o Dalai que deve mudar, dialogando com sinceridade, especialmente no que diz respeito às suas ações concretas. Como já dissemos muitas vezes, estamos prontos para continuar mantendo contato com o Dalai, contanto que ele desista de suas atividades separatistas contra a pátria-mãe, de atividades destrutivas contra os Jogos Olímpicos de Beijing e pare de incintar a violência.191
No dia seguinte em Ann Arbor, Michigan, o Dalai Lama durante uma conferência de imprensa disse:
Desde o começo apoiei as Olimpíadas. Precisamos apoiar os desejos da China. Mesmo após essa triste situação no Tibete, continuo a dar meu apoio às Olimpíadas.192
Anteriormente, em março de 2008, no seu Apelo ao Povo Chinês, o Dalai Lama disse:
Igualmente, a despeito de meu contínuo apoio às Olimpíadas de Beijing, as autoridades chinesas, com a intenção de criar atrito entre mim e o povo chinês, afirmam que estou tentando sabotar os jogos.193
Entretanto, no dia 18 de janeiro de 2008, o jornal ITV (da Inglaterra), juntamente com a organização Tibete Livre, com sede em Londres, fez uma entrevista com o Dalai Lama. O jornal publicou uma notícia intitulada Dalai Lama convoca protestos contra os Jogos Olímpicos e transmitiu partes da entrevista.194
Tendo talvez notado que o Dalai Lama havia baixado a guarda e se desviado de sua mensagem pública, o Departamente de Informação e Relações Internacionais do governo tibetano no exílio publicou uma nota de imprensa dizendo que o Dalai Lama havia sido mal-interpretado e que ele apoiava totalmente os Jogos Olímpicos de Beijing.195
Tibete Livre, entretanto, já havia impresso uma transcrição parcial da entrevista:
Perguntado pelo correspondente chinês da ITV, John Ray, se partidários do Tibete deveriam poder expressar de forma pacífi na China, durante os jogos olímpicos, seu apoio ao povo tibetano, o Dalai Lama respondeu que protestos pacíficos seriam justificáveis como forma de chamar a atenção da opinião pública chinesa para a questão tibetana:
“Vale a pena relembrar. O governo [chinês] já conhece o problema, mas é possível que o povo chinês não compreenda. Então, creio que vale a pena. Dessa forma, acredito que seja válido relembrar a milhares de chineses que existe um problema. Acho isso muito importante.”
Indagado se seria o melhor momento para fazer uma manifestação pacífica, o Dalai Lama respondeu: “Acredito que sim”.196
Durante toda a preparação dos Jogos Olímpicos de Beijing, em especial durante o revesamento da Tocha Olímpica, protestos violentos foram organizados pelos Grupos de Apoio ao Tibete.197 O plano de ação desses protestos foi esboçado durante a Quinta Conferência Internacional dos Grupos de Apoio ao Tibete, realizada em maio de 2007, em Bruxelas. Esse encontro internacional foi convocado pelo Departamento de Informação e Relações Internacionais da Administração Central Tibetana [o governo tibetano no exílio].198
O Congresso foi dirigido pelos políticos tibetanos mais próximos ao Dalai Lama: Samdhong Rinpoche, o Primeiro Ministro do governo tibetano no exílio, e Lodi Gyari, o representante do Dalai Lama em negociações com a China.199
A doutora B. Tsering Yeshi, Presidente da Associação das Mulheres Tibetanas, pertencia ao comitê de direção do congresso.200 Ela é também membro do comitê organizador do Movimento de Sublevação do Povo Tibetano201 que é acusado de ter organizado os distúrbios ocorridos em Lhasa em março de 2008.202
Nos seus primórdios, em janeiro de 2008, o Movimento publicou
a seguinte declaração:
Desviaremos a atenção dos jogos olímpicos através de campanhas estratégicas e unificadas, direcionando-a para a vergonhosa repressão chinesa dentro do Tibete, privando, assim, os chineses da aceitação e aprovação internacional que tanto almejam.
Fazemos um apelo aos tibetanos que estão no Tibete para que continuem a lutar contra o domínio chinês e prometemos nosso total suporte à sua corajosa resistência. Pedimos aos tibetanos no exílio e a nossos partidários no mundo livre que aproveitem quaisquer oportunidades para protestar contra os Jogos Olímpicos da China e para demonstrar seu apoio à luta tibetana pela liberdade.203
E em uma nota de imprensa de fevereiro de 2008, o grupo declarou: “Iniciaremos outro levante que irá abalar o controle chinês no Tibete e marcar o começo do fim da ocupação chinesa no Tibete”.204
Outras notas de imprensa diziam que o “Movimento de Sublevação do Povo Tibetano irá começar uma luta total com proporções de guerra”.205
Dos cinco grupos principais que constituíam o Movimento de Sublevação do Povo Tibetano, dois foram diretamente fundados pelo Dalai Lama, sendo que um a seu pedido e o outro sob os auspícios de organizações criadas pelo seu governo.206 O Congresso dos Jovens Tibetanos em especial tem como principal objetivo:
“Dedicar-se à tarefa de servir seu país e povo sob a orientação de Sua Santidade o Dalai Lama, o líder espiritual e temporal do Tibete”.207
Apesar de esses grupos terem jurado obediência a ele e levando-se em consideração o fato de que executam todas as suas atividades apoiando-o abertamente, o Dalai Lama, do seu lado, sustenta não possuir nenhum envolvimento em tais atividades, nem poder para influenciá-los. Num encontro com a imprensa, domingo, dia 16 de março de 2008, período em que se iniciavam os conflitos em Lhasa, perguntaram ao Dalai Lama se ele poderia acabar com os protestos. Ao que ele rapidamente respondeu: “Não tenho esse poder”.208
Além disso, como o New York Times divulgou num artigo intitulado “Dalai Lama não vai impedir protestos no Tibete”, o Dalai Lama revelou que ele tem contato direto com as pessoas envolvidas no conflito no Tibete.
Ele disse que recebeu um telefonema do Tibete no sábado. “Por favor, não nos peça para parar,” foi o pedido feito. O Dalai Lama prometeu que não o faria.209
Deve-se notar que durante os conflitos em Lhasa muitos chineses da etnia han e muçulmanos hui, de Lhasa, foram atacados, espancados, esfaqueados e mortos. Muitas lojas foram saqueadas, destruídas, depois incendiadas e aqueles presos do lado de dentro foram deixados para morrer queimados.210 Já que o Dalai Lama se recusou a pedir a seus partidários no Tibete para parar, será que suas ações poderiam ser consideradas coerentes com a ideia de “protestos não violentos”?
Dawa Tsering, o chefe do Ministério dos Assuntos Chineses do governo tibetano no exílio, foi entrevistado pela Radio France International, no período do conflito. Ele demonstrou uma assustadora falta de compaixão pelas vítimas e exibiu a compreensão totalmente deturpada do conceito de não violência do governo tibetano no exílio:
Primeiramente, preciso deixar claro que os [manifestantes] tibetanos têm permanecido não violentos [durante todo o incidente]. Do ponto de vista tibetano, violência quer dizer pôr a vida em perigo. Nas gravações de vídeo, pode-se ver que manifestantes tibetanos estavam batendo em chineses han, mas somente a surra aconteceu. Depois da surra, os chineses han foram libertados e fugiram. Portanto, [houve apenas uma] surra e nenhuma vida foi colocada em risco. Todas as mortes ocorreram devido a acidentes. A partir de gravações mostradas pelo governo comunista chinês, podemos ver claramente que [quando manifestantes] tibetanos atearam fogo às suas casas, os chineses han permaneceram escondidos no interior ao invés de escapar, o que fez com que eles fossem todos acidentalmente queimados até a morte. Aqueles que atearam e espalharam o fogo, por sua vez, não faziam nenhuma ideia de que havia chineses han escondidos na parte de cima das casas. Por isso não somente chineses han queimaram até a morte, mas alguns tibetanos também. Portanto, todos esses incidentes foram acidentais, não assassinatos.211
Numa entrevista em 1997, Samdhong Rinpoche, o Primeiro Ministro do governo tibetano no exílio, falou em infiltrar agentes tibetanos no Tibete para executar ações diretas:
“Muitos pensam que esse plano é apenas um esforço suicida, mas nós pensamos que a tentativa é válida. No momento nós estamos treinando algumas pessoas que possam fazer parte, embora seja difícil para elas aceitar a ideia de estarem sujeitas a serem aprisionadas ou até mortas”. Ele prossegue: “Não importa o que aconteça, eles serão sempre dedicados ativistas não violentos. Se estamos fadados a desaparecer, que pelo menos seja com alguma resistência positiva. Se permanecermos quietos isso equivaleria a uma aceitação e nós, então, também seríamos culpados.212
Como podemos reconciliar essas palavras do Primeiro Ministro tibetano, associadas à compreensão especial tibetana do que ativistas não violentos podem fazer (como foi indicado por Dawa Tsering acima), com o depoimento do Dalai Lama ao povo chinês:
É lamentável que, a despeito de meus sinceros esforços para não separar o Tibete da China, os líderes da RPC continuem a me acusar de “separatista”. Da mesma forma, quando os tibetanos de Lhasa e de muitas outras regiões fazem manifestações espontâneas para expressar seu ressentimento firmemente enraizado, as autoridades chinesas imediatamente me acusam de ter orquestrado essas manifestações.213
Para os meios de comunicação ocidentais, o Dalai Lama finge não estar envolvido em nenhum protesto contra os jogos olímpicos ou nas tensões ocorridas no Tibete, mas as organizações criadas por ele e empenhadas na satisfação de seus desejos levam a cabo seu trabalho sujo. Não é de se estranhar que o governo chinês não confie nele, apesar de suas declarações de sinceridade.
Também é interessante notar que muitos dos grupos envolvidos no Movimento de Sublevação do Povo Tibetano são apoiados pela organização norte-americana National Endowment for Democracy (Fundação Nacional pela Democracia, mais conhecida por NED). Centenas de milhares de dólares foram injetados nesses grupos durante os últimos anos como parte dos esforços do NED para minar a China comunista e apoiar os interesses estratégicos do governo norte-americano.214
O que é exatamente a Fundação Nacional pela Democracia e quem eles são? Uma breve história de como a NED foi criada foi apresentada pelo South Asia Analysis Group (Grupo de Investigação do Sul da Ásia):
Depois de sua eleição em novembro de 1980 e antes de assumir o mandato como Presidente em janeiro de 1981, o Sr. Regan estabeleceu um grupo de transição chefiado por William Casey, advogado e um dos administradores de sua campanha, que mais tarde assumiria o cargo de diretor da CIA, com a finalidade de recomendar medidas para fortalecer a capacidade do serviço de inteligência americano no exterior.
Uma de suas recomendações foi restabelecer as atividades políticas encobertas. Já que era possível que houvesse oposição por parte do Congresso e da opinião pública caso essa tarefa fosse confiada novamente à CIA, foi sugirido que ela fosse dada a uma ONG que não possuísse vínculos aparentes com essa agência norte-americana.
Esse assunto continuou sendo investigado pela American Political Foudation’s Democracy Programme Study and Research Group (Grupo de Estudos e Pesquisa do Programa para a Democracia da Fundação pela Política Norte- americana), entre 1981 e 1982, e, finalmente, o National Endowment for Democracy (NED) surgiu devido a um decreto do Congresso de 1983 como uma “organização não governamental bipardidária sem fins lucrativos que concede subvenções para ajudar a fortalecer instituições democráticas ao redor do mundo”.
Embora tenha sido concebida como ONG, é na verdade uma organização quase-governamental, já que até 1994 foi financiada exclusivamente com fundos aprovados pelo Congresso (uma média de 16 milhões de dólares por ano, durante os anos 80 e cerca de 30 milhões atualmente) como parte do orçamento da US Information Agency (Agência de Informação Norte-americana, USIA). Desde 1994, tem aceitado contribuições do setor privado para complementar as verbas aprovadas pelo Congresso.215
O jornal New York Times expôs o lado secreto da Fundação
Nacional pela Democracia:
O Projeto Democracia começou como o lado secreto de outra iniciativa totalmente aberta, bem-divulgada que tinha o mesmo nome. Segundo funcionários, o lado encoberto do Projeto Democracia tinha por objetivo executar tarefas referentes a política externa que outras agências governamentais não podiam ou não queriam desempenhar. Embora o braço público do Projeto Democracia, agora conhecido como Fundação Nacional pela Democracia, desse abertamente dinheiro federal para instituições democráticas estrangeiras e recebesse amplo apoio bipartidário, segundo funcionários, o braço secreto do projeto tomou um rumo
completamente diferente (…).
O Projeto Democracia transformou-se num aparato paralelo de política estrangeira – completo com seu próprio sistema de comunicação, enviados secretos, aluguéis próprios de barcos e aviões, contas de banco e empresas no exterior. Ele operava fora do sistema de tomada de decisões estabelecido pelo governo e fora do alcance do Congresso e constituía, como alguns funcionários disseram, uma expressão da profunda frustração da Administração de não poder pressionar a burocracia do Ministério de Assuntos Exteriores e o Congresso para adotarem o que funcionários da Administração chamavam de “doutrina Reagan” de apoio
a sublevações anticomunistas.216
Em uma entrevista concedida ao Jornal Washington Post em 1991, Allen Weinstein (diretor do Programa para a Democracia da Fundação Política Norte-americana, que levou à criação do NED) disse: “Muito do que fazemos hoje a CIA fazia de modo encoberto 25 anos atrás”.217
Como tem sido amplamente noticiado tanto pelos operadores americanos como pelos soldados tibetanos envolvidos, dos anos 50 até os anos 70, o Dalai Lama e seu governo estavam envolvidos com a guerra secreta da CIA no Tibete.218 Durante toda essa época, o Dalai Lama mostrava-se o campeão da não violência e negava qualquer envolvimento com a CIA.219
Atualmente o Dalai Lama novamente conta com grupos que trabalham para ele – apoiados por uma suspeita ONG americana semelhante à CIA – e que criam violentos distúrbios na China comunista; mesmo assim, ele se apresenta com a imagem oposta frente aos meios de comunicação. Na Revista Newsweek o Dalai Lama recebeu o apelido de “Lama de Tefl n”220 e, embora ele normalmente consiga cativar os meios de comunicação ocidentais, no que diz respeito a todas as questões importantes das negociações com Beijing, fica claro que sua duplicidade não trouxe nenhum resultado para o povo tibetano.