O caso Karmapa

O Décimo Sexto Karmapa, o chefe da Tradição Karma Kagyu, era um dos mais famosos e altamente reverenciados guias espirituais dentro da comunidade tibetana da Índia e gradualmente sua boa reputação também se expandiu pelo Ocidente. Ele era considerado um dos maiores guias espirituais do século XX. Tinha um grande número de seguidores em todo o Himalaia, incluindo a Índia, Nepal, Butão e Sikkhim, além de um crescente número de discípulos no Ocidente. Os Treze Assentamentos tinham o desejo de fazer dele seu líder espiritual. Por conseguinte, o governo do Dalai Lama tentou direta e indiretamente eclipsar a populariade e a fama do Karmapa. É bem sabido que o Dalai Lama e o Karmapa estavam em conflito aberto durante os últimos anos da vida do Karmapa.

Em uma entrevista, o Dalai Lama falou de seu relacinamento com o Karmapa:

No nível pessoal, ainda antigos amigos; nenhum problema. Porém, no que diz respeito à comunidade tibetana e à política, há uma certa dúvida, um pequeno distanciamento (…). O Karmapa – ele continua – recusou-se a contribuir no folheto da independência. E mais tarde, ouvi dizer que, em conversas com alguns de seus centros na Europa e América, ele disse que, como praticantes espirituais, eles não deveriam se envolver. (…) Então, Karmapa Rinpoche, penso, talvez tenha confundido as pessoas um pouco e isso me fez ficar ligeiramente triste (…).283

O que o Karmapa fez essencialmente foi expor a verdade sobre o uso da “Política Lama”. Portanto, levando em conta a visão que o Dalai Lama tem da união entre política e religião e sua identificação do Estado tibetano sob seu controle com a continuidade do desenvolvimento do budismo, não é provável que sua reação fosse somente de tristeza.

Depois que o Décimo Sexto Karmapa morreu, o Dalai Lama deu um passo sem precedentes usando seu poder para forçar a escolha da reencarnação do Karmapa. Isso foi completamente injustificável, já que historicamente a escolha sempre foi uma questão interna, feita exclusivamente sob a jurisdição da própria Tradição Kagyu. Havia dois candidatos: um nascido no Tibete ocupado pela China– era o candidato oficialmente reconhecido pelas autoridades chinesas – e o outro, nascido na Índia e reconhecido pelo grande Guia Espiritual Kagyu, Shamar Rinpoche. A linhagem de Shamar Rinpoche tem estado intimamente conectada com a linhagem do Karmapa desde o 13.º século e ele era considerado o segundo mais importante lama na Tradição Kagyu, vindo somente depois do Karmapa em pessoa. O Dalai Lama colocou-se do lado dos chineses e oficialmente reconheceu seu candidato, uma decisão que causou o caos dentro da Tradição Kagyu, produzindo uma profunda divisão entre aqueles que seguem o Dalai Lama e aqueles que seguem Shamar Rinpoche. Essa divisão conduziu essa tradição espiritual contra si mesma, o que levou algumas vezes à violência.
Um artigo na revista indiana Sunday dizia:

Os Dalai Lamas nunca tiveram nenhum direito sobre a confirmação e, menos ainda, sobre o reconhecimento de um Karmapa em nenhum momento da história. De fato, a linhagem do Karmapa precede a dos Dalai Lamas em quase trezentos anos e sua estirpe é e sempre foi inteiramente separada.

O Dalai Lama não tem autoridade histórica ou religiosa para aprovar as reencarnações do Karmapa, ou os lamas dirigentes de nenhuma escola do budismo tibetano, com exceção da sua própria linhagem gelugpa. Esse ponto pode ser um pouco confuso para não tibetanos, já que, como chefe do governo tibetano no exílio, o Dalai Lama goza da lealdade política de muitos de seus compatriotas. No entanto, seu papel político não dá autoridade espiritual para validar os lamas dirigentes de escolas budistas fora a sua. As quatro escolas budistas do Tibete sempre tiveram administrações separadas e escolheram seus próprios lamas dirigentes, da mesma forma que protestantes e católicos escolhem seus próprios líderes. Portanto, da mesma forma que o Papa não tem participação na escolha do Arcebispo Protestante de Cantebury, tampouco o Dalai Lama está autorizado a reconhecer o Karmapa, que é o líder da escola Karma Kagyu. Somente a administração do 16.º Karmapa está autorizada a validar seu próprio lama reencarnado dirigente.284

Em uma carta dirigida ao Dalai Lama, em fevereiro de 1997, Shamar Rinpoche afirmou claramente que o Dalai Lama não possui autoridade para confirmar a reencarnação do Karmapa e nem o direito de lançar “seu peso” sobre a linhagem Kagyu:

Isso equivale a uma ordem ditatorial medieval e entendo que esse é seu enfoque. No entanto, para mim isso é absolutamente inadmissível (…). Portanto, meu pedido final para o Gabinete Privado do Dalai Lama é que o nome de Sua Santidade, o Dalai Lama, não seja envolvido nesse assunto problemático (…). No que diz respeito à nossa linhagem, cabe a nós, que somos parte dela, alcançar seus objetivos (…). Você deveria ser mais prudente com suas pretensões!285

Como consequência de sua crítica pública ao Dalai Lama no que diz respeito a esse tema, o governo tibetano fez de tudo para transformar esse lama num pária dentro da sociedade tibetana.

Como a carta “As presas do mangusto” endereçada ao Dalai Lama diz:

(…) quando, em 1960, você tentou se livrar da influência e do poder de grandes lamas, como Dudjom Rinpoche e o Karmapa, os efeitos colaterais foram sentidos por muitos lamas tibetanos e você fez com que eles se unissem em oposição. Você não foi capaz de se conter e teve que produzir uma dolorosa ruptura na sociedade tibetana (…). Seus ministros haviam lhe informado que um Karmapa estabelecido no Himalaia afetaria o nome e poder do Dalai Lama como anteriormente, já que ele é muito popular nos Himalaias. Se o governo tibetano no exílio está realmente em prol da independência do Tibete, como pode uma organização privada, como a do Karmapa, afetar seu governo?

Ao dar esse apoio (ao candidato chinês), Sua Santidade tem noção de quão negativamente isso prejudicará o futuro do Tibete? Pensa que se durante sua vida não tem como ser o líder dos tibetanos no Tibete, pelo menos precisa manter sua posição de líder do Tibete na Índia, usando o Dharma e a política. É por esse motivo que Sua Santidade não se importa com o que acontecerá com o futuro do Tibete depois que Sua Santidade morrer, contanto que possa manter seu poder de agora. Isso é realmente muito triste (ver o Apêndice 2).

Numa entrevista em 1994, Jigme Rinpoche, um importante Lama Kagyu, fez os seguintes comentários sobre a questão do Karmapa:

(…) Na minha opinião, houve um erro já no começo, cálculos errados foram feitos, perdeu-se o controle e tornou-se necessário rumar nessa direção (…). Esses erros não foram cometidos agora, mas sim séculos atrás, o que acarretou a perda do país. Muitas pessoas no Ocidente pensam que todos no Tibete eram sábios e eles se perguntam por que os tibetanos perderam o Tibete. Mas quando olhamos objetivamente, vemos que erros como esses levaram à perda do Tibete e irão levar à perda da liberdade do Tibete no futuro (…).

Caso isso continue, o Tibete só terá mais alguns anos (…). O 16.º Karmapa disse algo assim a Gendun Rinpoche. Ele disse: “Você deve ir para a Europa e estabelecer o Dharma”. Gendun Rinpoche perguntou ao Karmapa o que iria acontecer no Tibete e na Ásia, e o Karmapa disse: “Somente o aspecto exterior do Dharma vai continuar a existir lá e será muito difícil no futuro manter sua essência”.286

Quando outros tibetanos alcançam fama e infl o Dalai Lama destrói sua reputação, sua segurança e algumas vezes até suas vidas, atuando sob o influxo de motivações políticas de ciúmes e agarrando-se ao poder. Foi isso o que ele fez ao Panchen Lama, a Dudjom Rinpoche, a Guntang Tsultrim e até mesmo a seu próprio guia espiritual, Trijang Rinpoche, e ao guia espiritual deste, Je Phabongkha Rinpoche. Foi o que fez com o Karmapa e o que está tentando fazer com os poucos sagrados guias espirituais que ainda sobram dentro da Tradição Gelug nos dias de hoje.