A instituição do dalai lama como a conhecemos atualmente – misturando Dharma com política como um método de governar – começa com o Dalai Lama popularmente conhecido como o Grande Quinto. Como consequência de uma complicada série de desenlaces políticos e históricos, bem como através de guerras, o Quinto Dalai Lama transformou a instituição do dalai lama em símbolo central do estado tibetano.
Devido ao rápido desenvolvimento e à crescente populariadade dos gelugpas, os reis da região de Tsang no Tibete, que eram seguidores da Tradição Karma Kagyu, sentiram progressiva animosidade com relação aos gelugpas e começaram a submetê-los a períodos de perseguição. Nos anos vindouros, um pouco antes e depois da morte
do Quarto Dalai Lama, as hostilidades entre os gelugpas e os simpatizantes do Rei Tsang aumentaram. Foi dentro desse ambiente de conflito político e religioso que o Quinto Dalai Lama,L osang Gyatso (1617-1682), nasceu.
Havia três candidatos ao trono do Quinto Dalai Lama. Um deles era Dragpa Gyaltsen, cuja fama e envergadura posteriores como grande mestre espiritual foram percebidas como ameaça pelo Quinto Dalai Lama. A autobiografia do Quinto Dalai Lama (Du ku la’i go zang em tibetano) diz que o Panchen Lama, Losang Chokyi Gyaltsen (Losang Chogyen), executou um ritual de adivinhação e escolheu-o – Losang Gyatso – como o Dalai Lama reencarnado, embora não tenha fornecido a data desse acontecimento, o qual tampouco foi mencionado na autobiografia do Panchen Lama.46
Muitas dúvidas têm sido expressas com relação aos exames de confirmação feitos para testar a autenticidade do Quinto Dalai Lama pelo discípulo do Regente do Dalai Lama, Sonan Rabten. A natureza do relacionamento entre o Dalai Lama e seu regente, bem como certos depoimentos feitos mais tarde, mencionados na própria autobiografia do Quinto Dalai Lama, alimentaram a discussão quanto à autenticidade do reconhecimento do Quinto Dalai Lama.47
De todo modo, a época em que o Quinto Dalai Lama nasceu era tão instável politicamente que sua descoberta e localização foram mantidas em segredo por algum tempo. Em 1635, quando o Quinto Dalai Lama tinha 18 anos de idade, o líder dos mongóis chogthu, que apoiava o governador de Tsang, enviou uma tropa de dez mil soldados para extirpar a seita gelugpa.48 Esses acontecimentos finalmente conduziram à guerra entre as forças mongóis chogthu e as forças mogóis qoshot, de Gushri Khan, que apoiavam o Quinto Dalai Lama, com cada um deles intencionando apoiar sua respectiva tradição budista. Gushri Khan saiu vitorioso e, em 1638, numa cerimônia celebrada no Templo Jokhang em Lhasa, ele foi colocado Rei religioso e detentor da fé num trono e recebeu o título de budista. Pouco tempo depois, uma carta enviada pelo chefe bön de Beri ao governador de Tsang acidentalmente caiu nas mãos dos gelugpas. Parte dessa carta dizia:
É muito decepcionante que nossos aliados, a tribo chogthu, tenham sido aniquilados. Entretanto, no próximo ano, irei organizar um exército em Kham e conduzi-lo a Ü [região central do Tibete, próxima a Lhasa]. Simultaneamente, você deve trazer seu exército de Tsang. Juntos nós vamos eliminar completamente a seita gelugpa, de forma que nenhum rastro deles jamais possa ser encontrado.50
Quando essa carta foi interceptada e entregue a Gushri Khan, ele imediatamente foi até o Dalai Lama, decidido a conduzir seu exército à batalha, primeiro contra o chefe dos beri e depois contra o governador de Tsang. Na guerra religiosa que foi deflagrada como continuação, o líder beri foi capturado e executado; então:
Gushri [Khan] (…) atacou o Rei Tsangpa ele mesmo em sua base em Shigatse. A seita Gelug enviou seu próprio exército de seguidores e monges para ajudá-lo e, em 1642, eles capturaram Shigatse. O rei do Tibete (o Rei Tsangpa) foi então executado. Gushri Khan concedeu a autoridade suprema sobre todo o
Tibete ao Quinto Dalai Lama.51
Tendo vencido seus inimigos em Tsang, havia outras tarefas a serem realizadas para que Losang Gyatso pudesse obter completo controle sobre o Tibete. Em seu artigo, O papel soberano do Quinto Dalai Lama, Zuiho Yamaguchi escreve:
O primeiro passo no caminho que conduziu o Quinto Dalai Lama, que não passava de um lama encarnado do monastério de Bras-spungs [Drepung], a ver a si mesmo como rei do Tibete e assumir as rédeas do governo, foi a construção de Potala.52
Seguindo o conselho de um oráculo Nyingma, o Dalai Lama empreendeu a construção de uma enorme fortaleza que dominasse a cidade de Lhasa e assegurasse sua posição mesmo que os mongóis retirassem seu apoio militar. John Powers enfatiza o significado do Palácio de Potala:
Durante seu reinado, a conexão entre os Dalai Lamas e Avalokiteshvara foi enfatizada e isso se refletiu na construção do Palácio de Potala, (…). O nome escolhido para o palácio foi tirado de uma motanha no sul da Índia que estava associada a Shiva na sua encarnação como Lokesvara, ou “Senhor do Mundo”, que era considerado pelos tibetanos uma emanação de Avalokiteshvara. Essa associação ajudou a estabelecer os Dalai Lamas como encarnações de um Buda e eles são vistos dessa forma pelos budistas tibetanos, que tradicionalmente veem o Palácio de Potala como a residência de Avalokiteshvara sob a forma humana.53
Ao destruir as forças opositoras em Tsang e construir o Palácio de Potala, o Quinto Dalai Lama assegurou algum poder político. Porém, para assegurar autoridade religiosa suprema para si próprio, existiam outros obstáculos a serem removidos. Na sociedade feudal daqueles tempos, um poder soberano só se sustentaria se fosse inquestionável e livre de rivais. Como era costume das monarquias medievais em todo o mundo, rivais eram assassinados e toda oposição era brutalmente eliminada.
Isso é claramente ilustrado pelo caso do Tulku ou Ngatrul
Dragpa Gyaltsen. Yamaguchi prossegue:
O Quinto Dalai Lama era um lama reencarnado (sprul sku [tulku]) do monastério de Bras-spungs [Drepung], mas havia outro lama reencarnado no monastério de Bras-spungs, a saber, sprul sku gZims-khang-gong-ma [o Tulku da residência superior, Tulku Dragpa Gyaltsen], tido como reencarnação de Pan-chen bSod-nams-grags-pa [Panchen Sonam Dragpa] (1478-1544). Para que o Dalai Lama se tornasse a autoridade suprema do Tibete, era imperativo que somente um único lama encarnado na própria pessoa do Dalai Lama presidisse o monastério de Bras-spungs [Drepung] desde sua sede no palácio de dGa’-Idan [Ganden].54
Dragpa Gyaltsen nasceu em 1619, no décimo mês do ano da ovelha e do elemento terra, de acordo com o calendário tibetano. Ele nasceu em Tolung, no seio da proeminente família Gaykhasa. Inicialmente, acreditou-se tratar-se de uma reencarnação do Quarto Dalai Lama, mas aos seis anos de idade ele foi em vez disso reconhecido, por Panchen Losang Chogyen, como reencarnação de Ngawang Sonam Geleg Pelsang (1594-1615). Sendo assim, ele foi, então, formalmente entronizado como o lama reencarnado da chamada Residência Superior do monastério de Drepung (a Residência Inferior era aquela do Dalai Lama). Ser um lama reencarnado da Residência Superior quer dizer que sua linhagem de reencarnação remonta a Panchen Sonam Dragpa (tutor do Terceiro Dalai Lama) e por causa de suas realizações de conhecimento e proficiência espiritual, Dragpa Gyaltsen era considerado igual ao Quinto Dalai Lama em status espiritual.
Uma ilustração gráfica do seu status espiritual equivalente pode ser vista numa pintura de thangkha do século XVII da deidade budista Palden Lhamo (Shri Devi), reproduzida em Sabedoria e Compaixão: A Arte Sagrada do Tibete. Uma descrição dessa pintura diz:
Na parte superior, no canto esquerdo, estão os três lamas gelugpas, cada qual com uma inscrição de identidade. (…) a figura central é a de Losang Chökyi Gyaltsen (posteriormente chamado de Primeiro Panchen Lama pelo Quinto Dalai Lama), o lama à sua direta é o Quinto Dalai Lama e o lama à sua esquerda é Tulku Drakpa Gyaltsen, outro lama reencarnado da universidade monástica de Drepung.
Nessa pintura fi claro que o Quinto Dalai Lama e Tulku Dragpa Gyaltsen possuem status iguais como discípulos do Panchen Lama. A explicação dessa pintura também revela como considerações políticas poderiam tornar-se prioritárias até mesmo em pinturas religiosas:
[A pintura pode ser datada] com segurança de antes de 1642. Já que o Panchen Lama é a figura central e Drakpa Gyaltsen está presente, fica claro que foi realizada antes de sua morte deste último e antes da supremacia do Quinto Dalai Lama em 1642, período a partir do qual ele ocuparia a posição central.55
Tulku Dragpa Gyaltsen era dois anos mais novo que o Dalai Lama. Sua supremacia espiritual, entretanto, parecia superar aquela do Dalai Lama. Peregrinos vindos da Mongólia e das fronteiras orientais de Kham costumavam primeiro apresentar seu respeito a Tulku Dragpa Gyaltsen e depois ir até o Dalai Lama, algumas vezes fazendo mais oferendas a Tulku Dragpa Gyaltsen do que ao Dalai Lama; além disso, quando falavam das residências de cima e de baixo, as pessoas enxergavam ambas em termos iguais.56
Isso era inadmissível para Sonan Rabten (que atuava como o principal dignatário do Quinto Dalai Lama) e para os demais funcionários do recém-estabelecido governo do Dalai Lama (o governo tibetano ainda é chamado de Ganden Phodrang em homenagem à residência do Dalai Lama no Monastério Drepung). Por causa de seu forte ressentimento e ódio, Sonan Rabten e seus associados começaram uma campanha de perseguição contra o desprevinido tulku e sua família.
Norbu, o governador de Tsang, era um parente próximo de Sonan Rabten e participou das intrigas contra a família Gaykhasa, as quais contaram com sua supervisão indireta ou, pelo menos, sua aprovação. Ele secretamente convidou os mongóis para criarem anarquia na área de Tolung e planejaram deixar os jovens membros da família Gaykhasa sem nenhuma opção a não ser lutar. Nessa ocasião, um grande número de membros dessa família foi morto. Isso era exatamente o que Norbu tinha planejado e, em 1638, ele se aproveitou da situação para apropriar-se de todas suas terras e bens. Apenas um ano depois, em 1639, outro incidente aconteceu.
Num esquema de falsificação sem precedentes, Sonan Rabten pessoalmente adulterou e destruiu alguns dos documentos referentes aos predecessores do Tulku. Sonan Rabten via esse tipo de ação como necessária, porque a proeminência de Dragpa Gyaltsen devia-se parcialmente às alegações de que ele era a reencarnação de famosos mestres budistas.
O Panchen Lama Losang Chökyi Gyaltsen (1570-1662), o guia espiritual de ambos, de Tulku Dragpa Gyaltsen e do Quinto Dalai Lama, havia escrito uma prece que listava as encarnações prévias de Tulku Dragpa Gyaltsen, que incluíam venerável Manjushri, Mahasiddha Bhiravapa [Biwawa ou Virupa], Sakya Pandita Kunga Gyaltsen, Buton Rinchen Drub, Duldzin Dragpa Gyaltsen, Panchen Sonam Dragpa, Sonam Yeshe Wangpo e Sonam Geleg Pelsang. A mesma linha de predecessores foi depois daquela época confirmada por Kyabje Phabongkhapa Dechen Nyingpo (1878-1941) e Kyabje Trijang Rinpoche (1900-1981).
De acordo com o próprio relato do Quinto Dalai Lama em sua autobiografi em 1639, no 15.º dia do quinto mês tibetano, Sonan Rabten falsifi u os nomes dos predecessores de Tulku Dragpa Gyaltsen. Sonan Rabten disse que o nome de um dos predecessores reconhecidos, Buton Rinchen Drub, havia sido mal interpretado por Panchen Sonam Dragpa quando este escrevia o colofão de um de seus textos. Por causa disso, segundo Sonan Rabten, o nome de Buton deveria ser removido da prece usual de súplica a Tulku Dragpa Gyaltsen. Devido a essa falsificação dos documentos nem mesmo o nome de Panchen Sonam Dragpa poderia estar incluído na prece.
Isso foi claramente um ato de difamação da parte de Sonan Rabten, porque a própria prece de Panchen Lama Losang Chökyi Gyaltsen atestava que Tulku era uma encarnação de ambos, Buton Rinchen Drub e Panchen Sonam Dragpa. O fato de Sonan Rabten ter eliminado os documentos que queria ocultar chega a ser claramente mencionado até mesmo na autobiografia do Dalai Lama.
Que Sonan Rabten mentiu abertamente para alcançar seu objetivo é evidência clara de seus esforços para isolar e denegrir Tulku Dragpa Gyaltsen. Mais tarde, em 1642, o status do Tulku foi ofi lmente “rebaixado”, novamente pela decisão de Sonan Rabten. Dessa e de outras formas Tulku Dragpa Gyaltsen foi perseguido por mais de dez anos e foi cada vez mais levado ao isolamento.
Não se importando com essas circunstâncias, Dragpa Gyaltsen continuou com seus compromissos espirituais. Além de ter o Quinto Dalai Lama como um de seus mentores espirituais, o Tulku honrou-o e fez extensivas oferendas materiais a ele. Em certas ocasiões, quando o Dalai Lama estava partindo ou retornando a Lhasa, Dragpa Gyaltsen ia pessoalmente despedir-se ou dar-lhe boas-vindas.
Tulku Dragpa Gyaltsen subitamente fi u doente no 25.º dia do quarto mês tibetano do ano do “Macaco de fogo”, 1656. Usando sua doença como uma cobertura, Sonan Rabten e Norbu executaram várias tentativas de acabar com a vida de Dragpa Gyaltsen. Finalmente, no 13.º dia do quinto mês, Dragpa Gyaltsen foi brutalmente assassinado em sua residência. Para evitar suspeitas de assassinato, vários panos de seda foram introduzidos profundamente em sua garganta. Dessa forma um grande e puro ser espiritual, amado e venerado pela grande massa de tibetanos comuns, foi obrigado a sofrer humilhação e morte pelas mãos dos ministros do Quinto Dalai Lama.57 Tulku Dragpa Gyaltsen tinha 38 anos de idade quando morreu.
Como Kundeling Rinpoche diz:
Esse foi um evento sem precedentes, o mais escandaloso que já ocorreu na história do Tibete em geral e dos gelugpas em particular. A julgar por esses acontecimentos, muitas conclusões podem ser tiradas sobre a natureza da própria posição do Dalai Lama, o papel de seus ajudantes e o monopólio de seu recém- estabelecido governo do Ganden Phodrang.58
Alguns comentaristas tentaram atribuir o assassinato exclusivamente aos ministros do Dalai Lama, especialmente a Sonan Rabten, afirmando que o Dalai Lama não tinha conhecimento de suas ações, mas como Yamaguchi escreve: “fi evidente, pelas críticas abertas que fazia a Panchen Sonam Dragpa, em suas Crônicas do Tibete, escrita em 1643, que o Dalai Lama detestava o lama encarnado”.59 Depois da morte de Dragpa Gyaltsen, o Quinto Dalai Lama ordenou que a linhagem de reencarnações desse lama fosse finalizada.
Muitos lamas gelugpas acreditam que Dragpa Gyaltsen, e não Losang Gyatso, era a verdadeira reencarnação do Quarto Dalai Lama e que quando Dragpa Gyaltsen morreu ele se tornou o protetor da Tradição Ganden de Je Tsongkhapa. De fato, antes de sua morte, o próprio Dragpa Gyaltsen predisse que iria se tornar o protetor do Dharma Dorje Shugden.60
Quando concedeu as bênçãos da iniciação de Dorje Shugden, em 25 de julho de 1996, a mais de cinco mil discípulos na Inglaterra, Geshe Kelsang Gyatso explicou:
Primeiro vocês devem saber quem é Dorje Shugden. Dorje Shugden é uma deidade iluminada, a manifestação da sabedoria de Buda Je Tsongkhapa. É uma crença comumente aceita a de que após a morte do grande Lama Tulku Dragpa Gyaltsen, este apareceu como Dorje Shugden. O primeiro Panchen Lama, que era o Buda Amitabha vivo, listou algumas das reencarnações anteriores de Dragpa Gyaltsen, que foram, durante a época de Buda, o Bodhissatva Manjushri e, depois, o Mahasiddha Biwawa, o grande Sakya Pandita e Buton Rinchen Drub. Esses seres sagrados também eram reencarnações anteriores de Je Tsongkhapa.
Mais tarde, o grande iogue Kelsang Khedrub e muitos outros lamas, incluindo Kyabje Trijang Rinpoche, listaram as encarnações anteriores de Dorje Shugden, que são os mesmos seres sagrados que previamente listei, desde o Bodhisattva Manjushri até Buton Rinchen Drub. Isso prova que Dorje Shugden e Je Tsongkhapa são o mesmo contínuo mental, ou seja, uma pessoa com aspectos diferentes. Por essas razões válidas digo que Dorje Shugden é a manifestação do Buda da Sabedoria Je Tsongkhapa – sem sombra de dúvida.
Je Tsongkhapa ele próprio aparece como Dorje Shugden para impedir que sua doutrina da Linhagem Oral Ganden se degenere. Ele faz isso através da pacificação de obstáculos, da reunião das condições necessárias e da concessão de poderosas bênçãos sobre os praticantes de sua doutrina.
Se confiarmos em Dorje Shugden com fé, ele vai cuidar de nós como uma mãe cuida de seu filho. Ele vai nos guiar pelo caminho correto, o caminho libertador. Ele vai pacificar nossos obstáculos e reunir as condições necessárias para nós e vamos receber suas poderosas bênçãos através das quais nossa sabedoria, compaixão e poder espiritual vão aumentar. Através disso podemos facilmente fazer progressos ao longo do caminho rápido à iluminação que nos é mostrado por Je Tsongkhapa.62
Mais tarde, durante sua vida, o Quinto Dalai Lama compreendeu que havia confundido a verdadeira natureza de Dorje Shugden e começou a se engajar em sua prática e a compor preces para ele (ver Capítulo 1). Nelas, as primeiras escritas a Dorje Shugden, ele convida Dorje Shugden a vir do Dharmakaya, o que indica claramente que ele passara a vê-lo como um ser iluminado.63
Tendo destruído a vida de Tulku Dragpa Gyaltsen e estabelecido sua autoridade religiosa sobre o Tibete, o Quinto Dalai Lama começou, então, a estabelecer sua autoridade política. Um obstáculo remanescente percebido por ele em seu caminho rumo à total supremacia estava no controle sobre o poder de nomeação do regente, posição que havia sido conferida a Sonan Rabten pelo próprio Gushri Khan. Gushri Khan e Sonan Rabten morreram na mesma época e a disputa que surgiu entre os mongóis sobre quem iria herdar a autoridade de Gushri Khan deu ao Dalai Lama a oportunidade de que ele precisava para se apropriar do direito de escolher o futuro regente.64
Nesse contexto, os principais obstáculos à conquista do total controle do Tibete pelo Dalai Lama eram Norbu e Gona Shagpa (sGosna-shag-pa). Ambos eram parentes por parte materna do regente anterior, Sonan Rabten. Embora Norbu esperasse se tornar o regente logo após a morte de Sonan Rabten, tanto por ser um parente próximo como por sua carreira e posição de até então, “se o Quinto Dalai Lama o tivesse aceito prontamente, seria como respaldá-lo como sucessor de forma que ele não exerceria nenhum tipo de controle já que a autoridade do regente havia sido conferida por Guši Khan, ele estaria apoiando publicamente um fato histórico que estava além de seu controle.”65 Isso diminuiria seu poder. Além disso, se eliminasse Norbu, ele estaria se livrando da pessoa que poderia provar que o Quinto Dalai Lama estava por detrás do assassinato de Tulku Dragpa Gyaltsen.
O Dalai Lama começou uma campanha impiedosa e cínica contra essas duas figuras importantes, até que, finalmente, temendo por suas vidas, ambos buscaram refúgio sob a proteção do Monastério Tashi Lhunpo, a sede do Panchen Lama. Tomando conhecimento disso, o Dalai Lama enviou suas tropas e ameaçou atacar o monastério. O Panchen Lama, que era o próprio guia espiritual do Dalai Lama, juntamente com os principais lamas dos monastérios de Sera, Drepung e Ganden, pediram que Norbu fosse perdoado, mas a resposta do Dalai Lama foi desafiadora:
O detentor dos ensinamentos do rei do Dharma (a saber, Guši Khan) não me confiou essas 130.000 habitações do Tibete para que as compartilhe com esses dois parentes maternos.66
Ao fi o plano do Dalai Lama de atacar não foi levado a cabo, mas a extradição dos dois “parentes maternos” garantiu sua soberania sobre todo o Tibete. O Panchen Lama, uma das mais elevadas fi as espirituais na história da Tradição Gelug, morreu em 1662, mas o Quinto Dalai Lama nem mesmo chegou a comparecer ao funeral:
O Dalai Lama, agora chefe de estado, saiu em viagem, alegando que sua presença havia sido solicitada pelo oráculo do Monastério bSam-yas [Samye], e ele somente enviou um oficial de baixo escalão para participar do funeral de um grande erudito que havia sido seu professor. Parece que a intercessão do defunto a favor dos “dois parentes maternos” perturbou-o consideravelmente.67
Mais recentemente, estudiosos começaram a investigar “o mito do Grande Quinto”. Por exemplo, Elliot Sperling comenta:
Podemos dizer com segurança que o Quinto Dalai Lama não cabe na imagem padrão que as pessoas de hoje fazem de um Dalai Lama, em especial na imagem de um Prêmio Nobel da Paz.68
Um exame de alguns dos depoimentos do Quinto Dalai Lama indica exatamente até onde ele estava disposto a ir para eliminar seus opositores. Dizem que ele contou o seguinte a um dos funcionários de Gushri Khan:
Confiar nessa virtude especial do bodhisattva – isto é, considerar a si mesmo e aos outros de igual importância – não evitou conflitos. Portanto, diante dos outros, (…) só nos resta sentirmo-nos envergonhados dessa virtude.
E também:
Embora possamos nos vingar, eu, (…) o clérico que ocupa o assento dos oniscientes, não pareceria ser um monge desobediente.69
Com isso, o Dalai Lama queria dizer que, por causa de sua posição elevada, o povo tibetano não veria falhas em suas ações mesmo que essas ações não estivessem de acordo com os ensinamentos de Buda. Shakabpa salienta que “ele podia ser impiedoso dissipando uma rebelião” e cita-o dizendo “(…) nenhuma piedade deve ser desperdiçada com um homem que deveria ser executado por seus crimes”.70 Durante a revolta dos karmapas em Tsang, o Dalai Lama
deu as seguintes ordens:
[No que concerne àqueles no] grupo de inimigos, aqueles que
desrespeitaram os deveres que lhes foram confiados:
Faz com que as fileiras masculinas sejam como árvores cujas
raízes foram cortadas;
Faz com que as fileiras femininas sejam como riachos que
secaram no inverno;
Faz com que as crianças e netos sejam como ovos esmagados contra as rochas;
Faz com que os serventes e seguidores sejam como montes de grama consumidos pelo fogo;
Faz com que seu domínio seja como uma lâmpada cujo óleo se exauriu;
Resumindo, aniquile qualquer vestígio deles, até mesmo seus nomes.71
Com a soberania do Quinto Dalai Lama abarcando toda a autoridade espiritual e temporal, ele não somente se tornou um autocrata, mas também o senhor supremo da vida e da morte para a grande massa do povo tibetano. Seu governo iria tirar proveito dessa posição ao máximo. É importante notar que o atual Dalai Lama comumente faz referência à sua afinidade com o Quinto Dalai Lama, que, como vimos, estava muito envolvido na guerra e em atividades políticas. Uma declaração oficial do governo tibetano publicada no dia 31 de maio de 1996 cita o Dalai Lama que diz:
Eu sou o sucessor do Grande Quinto Dalai Lama e, do mesmo modo, tenho uma conexão cármica especial com os Dalai Lamas anteriores. É meu dever, portanto, preservar o legado do Grande Quinto e do 13.º Dalai Lama.72